O trauma da morte do Pai e do Filho
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Fim de semana atribulado...texto atrasado. Acontecerá outras vezes...
Na semana passada dei minha primeira aula no Programa de Pós-Graduação em Psicanálise e Políticas Públicas da UERJ (PPPP-UERJ), no Mestrado Profissional. Naquela aula surgiu uma discussão a respeito da experiência do supereu como um ataque sádico sobre o eu, realizado pelas figuras parentais e seus valores morais enquanto objetos introjetados. Ontem foi o Domingo de Páscoa; sendo assim, aproveito a ocorrência próxima destas duas datas para tratar, aqui, da experiência cultural como traumática e de sua relação com a Paixão de Cristo.
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Retábulo de Issenheim (Mathias GRÜNEWALD, 1512-16) |
Em Totem e tabu (1912-13), Freud dedica algumas linhas a pensar criticamente justamente a doutrina e a celebração cultural cristã da Paixão de Cristo até Sua Ressureição na Páscoa. Vamos ao que Freud escreve:
"Não pode haver dúvida de que no mito cristão o pecado original foi um pecado cometido contra o Deus-Pai. Se, entretanto, Cristo redimiu a humanidade do peso do pecado original pelo sacrifício da própria vida, somos levados a concluir que o pecado foi um homicídio (...). O próprio ato pelo qual o filho oferecia a maior expiação possível ao pai conduzia-o, ao mesmo tempo, à realização de seus desejos contra o pai. Ele próprio tornava-se Deus, ao lado, ou, mais corretamente, em lugar do pai. Uma religião filial deslocava a religião paterna." (FREUD, 1912-13, p. 156)
Freud retomou sua análise do cristianismo em outros textos, mas para a discussão de hoje me atenho ao ensaio de 1912-13. Para ele, o cristianismo é uma tentativa de elaboração de um evento traumático que deu origem à cultura patriarcal que ainda nos regula. O evento é miticamente imaginado por Freud da seguinte maneira: Nos primórdios da humanidade, vivíamos em hordas dominadas cada uma por um macho forte que gozava da posse de todas as fêmeas e excluía os outros machos do grupo; este macho-pai, quando assassinado por algum filho, era substituído por ele e - rei morto, rei posto -, nada mudava na ordem social. Porém, deve ter havido um acontecimento que tudo mudou: os filhos devem ter se reunido e matado, em grupo, o pai. Além de tê-lo matado, supõe Freud, eles o devoraram num banquete canibal, com o intuito de assimilarem a força daquele que invejavam e odiavam. O pai morto devorado se tornou, por este processo, um pai introjetado, um traço comum a cada canibal, o que viabilizou a identificação entre irmãos/pares no grupo - todos têm algo em comum: o crime -; além disso, a introjeção deste pai odiado e amado fez com que cada filho passasse a temer, respeitar e, ao mesmo tempo, de modo ambivalente, glorificar o pai, mesmo que morto. O resultado é que a comunidade de filhos estabeleceu o respeito à Lei do Pai (interdição ao sexo com as mulheres da família - mãe e irmãs - e interdição do parricídio) como condição de vida em sociedade ao guardar dentro de si um Outro humano, um corpo estranho e difícil de digerir que reiterava a cada um dos antropófagos a lembrança de que eles guardavam o pai e o crime contra o pai dentro deles.
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Canibalismo no Brasil (Théodore DE BRY, 1562) |
Essa cultura patriarcal e edipiana se repete, para Freud, desde tempos imemoriais, compulsivamente. O supereu (FREUD, 1923), como introjeção da Lei Paterna, seria, por essa via, a herança do supereu dos ancestrais - a literal incorporação do pai. Um acontecimento traumático introjetado pelos humanos, exatamente por resistir à nossa capacidade de significação, é repetido compulsivamente, como ocorre com os registros dos traumas (FREUD, 1920). O Pai, o supereu introjetado, ainda assim permanece como uma exterioridade, um morto inassimilável, que violenta sadicamente o eu, fazendo algo do pai tirânico da horda primeva permanecer dentro de cada um de nós. Freud apresenta, portanto, uma concepção de cultura como compulsão à repetição de um evento traumático não-assimilado.
Diversas tentativas de elaborar tal evento traumático inaugural podem ser registradas. Para o criador da psicanálise, a elaboração cristã é apenas uma delas, e ela se dá da seguinte maneira, como se vê no excerto publicado mais acima: o amor dos filhos pelo pai assassinado, após internalizarem o pai, se transmuta em sentimento de culpa. O modo cristão de expiar esta culpa insuportável é o sacrifício de um Filho ao Pai, mas, ambivalentemente, no mesmo ato, substituição do Pai pelo Filho como novo Deus, que ressuscita negando a morte e, ao mesmo tempo, indica que o Deus é imortal (O Pai/Filho morto é ainda mais poderoso). Logo, o cristianismo não desvela inteiramente o evento esquecido, não o elabora integralmente e, assim, continua a repetir compulsivamente as memórias enigmáticas do trauma (como o banquete em comunhão do corpo e do sangue do Deus).
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Transfiguração (RAFAEL Sanzio, 1517-20) |
Como sinaliza Jô Gondar (REIS & GONDAR, 2017), Sandor Ferenczi segue Freud na concepção da cultura como compulsão à repetição de um evento traumático (1924). Ambos trabalham com a ideia de uma filogênese como base explicativa da herança psíquica inconsciente dos traumas do passado desde a Era do Gelo, ao menos. Fazem uso da ideia de filogênese exatamente para tentar dar conta do fenômeno das repetições transgeracionais. Para os dois, mas Ferenczi dá ainda mais ênfase que Freud sobre o assunto, a herança cultural nada mais é que a compulsão à repetição das defesas e tentativas mais ou menos fracassadas de assimilação de acontecimentos dolorosos dos nossos antepassados, de modo que a cultura sempre é experimentada como uma alteridade para o sujeito, que sofre para se situar nela. Para Ferenczi, a apropriação da cultura se dá através do mimetismo do adulto: a criança imita o adulto, repetindo ativamente aquilo que não faz sentido para ela - e a assimilação se daria pela exaustiva repetição...porém, pode-se dizer que, em última instância, o mimetismo faz perdurar a estraneidade, a exterioridade que a cultura ostenta em relação ao sujeito.
Finalmente, Jacques Lacan, principalmente nos anos 1960-70, insistirá que a experiência do Outro, ou seja, a experiência de uma alteridade transmitida pelo fenômeno da linguagem, é uma experiência traumática (p.e.: LACAN, 1963). O Outro atravessa o sujeito, o discurso do Outro corta o infans assujeitando-o, alienando-o e, apenas através de algum trabalho de elaboração, o sujeito poderá, talvez, minimamente, descolar seu desejo e afirmá-lo como não sendo simplesmente o desejo do Outro (LACAN, 1959-60). Através da linguagem se herda o fenômeno cultural que nos humaniza, mas, ao mesmo tempo, nos subjuga e nos impõe uma repetição de uma não-inscrição que Lacan designará pelo real do objeto a: algo que não cessa de não se inscrever (LACAN, 1968-69). E, no entanto, o sujeito só existe como efeito da interferência cultural - não há um sujeito anterior à cultura, ele é um subproduto da cultura, mas, ao mesmo tempo, algo nele resiste a ser dito pelo discurso do Outro.
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Lamentação sobre o Cristo morto (Andrea MANTEGNA, 1475-78) |
O que a psicanálise oferece como possibilidade de realização psíquica, no que tange ao tema da cultura como fenômeno traumático, tal como no cristianismo, é também a morte do Pai e a morte do Filho...porém não para deificar o filho, o homem, como faz a religião ou o humanismo. A psicanálise não oferece consolação nem compensação, apenas trabalha pela afirmação do desejo inconsciente, o que resta quando supereu e eu são despotencializados. Não por acaso, Michel Foucault, em As palavras e as coisas (1966) quando, dando continuidade às consequências da máxima nietzscheana de que Deus está morto (NIETZSCHE, 1883), escreve que a morte do Homem está no horizonte, para argumentá-lo, se aproxima tanto da antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss e justamente da psicanálise lacaniana e da sua destituição não só de Deus, mas também do Homem como valor (do eu, do narcisismo), para fazer agir o inconsciente como expressão de um desejo que busca libertar-se da alienação no outro imaginário, no semelhante, e no Outro, na alteridade como diferença. Mesmo que este esforço talvez sempre fracasse parcialmente, também ocorre de se realizar parcialmente. É nisso que a psicanálise aposta: na elaboração do trauma que é também a morte do Filho, do Homem, do eu.
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