Muros brancos

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Lembro os leitores que este blog é um projeto de extensão universitário, sou professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), dou aula para o curso de psicologia do campus de Rio das Ostras. Mas eu não pisava no campus, devido à pandemia de COVID-19 e o consequente trabalho remoto estabelecido como alternativa ao presencial, há dois anos até terça-feira passada, dia 29 de março de 2022. E o meu texto de hoje trata da triste surpresa que tive ao retornar presencialmente a este campus após um intervalo de dois anos.

Grafite de Lobão que foi apagado durante a pandemia

Antes de entrar nos prédios, antes de encontrar os colegas e alunos, me deparei com uma importante diferença de 2020 para 2022. Os muros e paredes estão todos brancos. Antes, havia neles a arte do grafite, parte dela, inclusive, feita pelo artista plástico Lobão (não confundir com o cantor e compositor homônimo que nada tem a ver com nossa conversa de hoje). Mais impactante é lembrar que não se trata somente da tentativa de apagamento de um trabalho estético, mas também de um ato político. Estavam representados nos muros do campus imagens de Marielle Franco, de rostos negros colossais (este é o grafite de Lobão), de indivíduos praticando a capoeira, textos como Chega de estupros etc.

Apagar estas imagens e textos e deixar os muros brancos, sem nenhum debate com a comunidade acadêmica, deve ser interpretado. O farei considerando que tal sintoma é sobredeterminado, como ensina Freud (1900):

1) Pode-se dizer que foi um puro ato administrativo de manutenção do patrimônio através de uma prática de rotina de, de tempos em tempos, pintar os muros para deixá-los com uma aparência de limpeza e cuidado (aliás, o significante problemático 'puro' aparece até mesmo em P.U.R.O. - Polo Universitário de Rio das Ostras - administrativamente renomeado de C.UR.O. [Campus Universitário de Rio das Ostras], outra encrenca!). Porém, se o que estava grafitado fosse realmente valorizado pela administração seria reproduzido após os cuidados com o patrimônio. Se isso não foi feito é porque o suposto gesto frio, desinteressado e asséptico de deixar tudo branquinho foi também orientado para o apagamento ativo daquelas marcas. Como se grafite fosse sujeira, como se muros manchados fossem um horror.

2) Não creio que o problema tenha sido só os muros estarem manchados; também havia um incômodo com o conteúdo das manchas. Aquelas imagens e textos tocam em três temas políticos espinhentos que vêm sendo calados nos últimos anos no Brasil - e que a liberdade de expressão tão necessária na universidade tentou tornar discutíveis -, quais sejam: violência contra mulheres (e em Rio das Ostras os números anuais de estupros são alarmantes), inclusão dos negros nas universidades através de ações afirmativas e, com a presença da imagem de Marielle Franco, não só estes dois temas estão condensados, mas também se exprime um terceiro: o perigo da ascensão do crime organizado miliciano que, como se sabe, era objeto de investigações da vereadora antes de ser assassinada.

Chega de estupros, também apagado

3) Apagar a imagem de Marielle Franco é repetir o ato violento do assassinato dela de novo, já que a quebra da placa com seu nome no centro do Rio de Janeiro foi a primeira repetição. Apagar o texto Chega de estupros é repetir o ato violento de muitos casos de estupro em que o agressor ou a família da estuprada cobram dela o silêncio e os outros fazem vista grossa ao fato. Apagar o grafite de Lobão, que põe dois expressivos rostos negros na parede do Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT), é novamente descolar duas personagens que têm tentado se encontrar, a universidade e os negros.

4) Podemos ir um pouco além. Apagar é censura. Tive a infeliz coincidência de atestar este apagamento na semana em que faz aniversário o golpe militar de 31 de março de 1964 o qual instalou uma ditadura militar no Brasil, que durou 21 anos, e que primou pela perseguição política, pela censura, pelo apagamento de textos, imagens e pessoas (as calando, expulsando ou matando) e pela imposição de um determinado status quo político-econômico à população brasileira em geral. Gostaria de lembrar o leitor que, apesar de todos estes fatos históricos acima mencionados, há quem ainda exalte a ditadura militar brasileira - inclusive no governo atual.

5) Apagar é o que quis fazer a ditadura. Apagar é o que ainda fazem aqueles que exaltam a ditadura. Sabemos que a adoração aos tempos da ditadura (ou como alguns preferem chamar, "a Revolução") é muito presente nas polícias brasileiras e, por extensão, nas milícias, nascidas nas sombras daquelas. A cultura miliciana é herdeira da polícia da ditadura e funciona de modo similar: apaga, censura, elimina o que incomoda. As relações de proximidade entre o atual governo e pessoas ligadas às milícias reaparece no modo mesmo de fazer política: a decisão de destruir tudo que existia e precisava ser eliminado, do seu ponto de vista, é claro. É uma política do desfazer, mais do que do fazer. E isso também está presente no Ministério da Educação.

Marielle Franco, também apagada

6) Os muros brancos da UFF evidenciam um apagamento que, em psicanálise, chamaríamos de um ato de recalcamento orientado por uma censura (FREUD, 1900). É o procedimento que Freud exaustivamente descreveu como determinante das psiconeuroses (FREUD, 1895). O recalcamento é uma defesa psíquica em que se opera um esquecimento ativo, um movimento de deixar/tornar inconsciente algo que não queremos ver nem pensar. Esta defesa tem por fim uma assepsia psíquica, manter o eu com a imagem que lhe apraz, sem manchas, sem sujeiras, desligado de tudo que existe e com que não quer se identificar. Mas este eu mesmo não é somente formado pela negação, ele foi ativamente moldado a partir de identificações (FREUD, 1923; LACAN, 1949); identificações com certas imagens e discursos que vieram do Outro, que o fizeram se sentir amado e se amar e, por isso mesmo, o tornaram resistente à mudança - por medo da perda do amor do Outro (FREUD, 1926). 

7) As imagens apagadas, através do sinal invertido, nos indicam com que se identifica este suposto eu coletivo que pintou os muros da UFF de branco. Trata-se de um eu que não gosta da imagem de gente preta por perto, de um eu que não gosta de manchas nas paredes (que devem ser branquinhas e limpas, como num quartel), de um eu que não quer que se fale de estupros (não necessariamente que eles não ocorram), e assim perpetua a violência sexual contra as mulheres (um eu pactuado, identificado com o agressor macho viril [FERENCZI, 1933]), de um eu que mata Marielle, o que parece ter sido um procedimento miliciano. 

A ronda (Giovanni FATTORI, 1872) nos mostra bem como a tradição militar do muro branco é antiga

8) Logo, deixar os muros brancos não é só um apagamento de um conjunto de formas expressivas, mas a afirmação de uma moral. O muro é branco, macho, agressor e miliciano. Podemos dizer que ele condensa exatamente o sonho dos brancos machos militarizados, agressores e milicianos - construir muros contra a circulação do que põe seu poder em risco.

9) Porém, Freud também ensina que o recalcamento não é a extinção de uma memória. Ele apenas a torna inconsciente. Ele apenas a joga para o inconsciente, mas não sua carga afetiva. Esta última é desvinculada da memória, mas permanece incomodando o sujeito ora como angústia,  ora como afecções corporais (conversões), ora como medo ligado a um objeto externo, ora como intensidade compulsiva (FREUD, 1915). Ela continua a pressionar por ser descarregada mas só seria possível ao se religar ao que está no inconsciente pressionando para retornar ao aparelho motor e à consciência, seja através do sintoma ou do desrecalcamento. Irrupções violentas do que foi calado podem também acontecer, em passagem ao ato (LACAN, 1962-63). A psicanálise como terapêutica visa tornar o material inconsciente consciente de modo que o eu se remodele para acolher aquelas diferenças até então insuportáveis para ele. Ou seja, deve haver lugar para o preto no branco, para a mulher no homem, para o civil comum no miliciano, para que o conflito seja vivido, em sua tensão, conscientemente.

Grafite representando a arte da capoeira, arte preta e historicamente maldita e temida pelo branco. O branco agora prevalece com o apagamento dessa imagem

10) Ética e politicamente, portanto, a psicanálise não nos deixa esquecer; nos traz, de novo, à memória, aquilo que foi apagado, ela preenche as lacunas para que possamos elaborar aquele material e não simplesmente nos defender violentamente - o que se reverte, com frequência, em violência contra si mesmo, aliás. É o que estou tentando fazer aqui neste blog. Nesse sentido, pode-se dizer também que a psicanálise, por mais que tenha sido criticada por ele, encontra parentesco com o método genealógico de Michel Foucault, que, como o próprio pensador define em 1975-76, tem por finalidade fazer aparecer as vozes caladas por um modo de cristalização do poder, por uma dominação, para que os jogos de poder, os enfrentamentos, se tornem possíveis novamente.

11) Neste sentido, seja a genealogia foucaultiana, seja a psicanálise, seja a arte de Lobão, estamos diante de três práticas eminentemente democráticas, que concebem a democracia não como consenso, mas como possibilidade de lutas, discussões, querelas. E do outro lado, no apagamento, no muro branco, estamos diante de uma força repressiva, parente das ditaduras, vontade de dominação de um modo de ser em relação aos outros, pela força: no caso, um modo identificado à imagem branca, limpa, machista e militarizada.

NÃO À DITADURA MILITAR! NÃO A CELEBRO - MAS É PRECISO LEMBRAR!

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