Monet e o que não é divertido

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Está acontecendo, no Boulevard Olímpico, na Gamboa, no Rio de Janeiro, uma exposição multimídia chamada Monet à beira d'água, na qual são projetadas através de animações digitais, várias pinturas do mestre e precursor do Impressionismo. 

Essa exposição repete algo que está bastante em moda na atualidade: centrar na diversão o fundamento e o foco do que poderiam ser diversos tipos de experiência estética. Vemos isso na produção, organização e divulgação de inúmeros trabalhos artísticos atuais e tentativas de tornar acessíveis produções antigas. É como se só fosse possível fruir de uma obra de arte se ela fosse divertida. Quero hoje discutir o problema do 'divertido', a partir do próprio Monet - e com a costumeira ajuda de Freud.

As ninfeias - As nuvens (Claude MONET, 1920-26)

Chamo de 'divertido' a experiência estética que provoca um espanto festivo e alegre, uma interjeição como 'Uau!', ou adjetivos como 'Incrível!' em português, ou o onipresente 'Amazing!' em inglês. O 'divertido' pode ser uma obra de arte, mas também um feito que entra para o livro Guinness dos recordes, como atravessar de um prédio a outro numa corda bamba muito extensa. 'É divertido de assistir!', alguém poderia dizer, a respeito de um talk-show. 'Divertido' é também cada pequeno vídeo do TikTok. 'Divertido' é alguém numa festa, mas na vida cotidiana não. 'Divertido' é o lúdico reduzido à distração, ao passatempo.

Me parece que o 'divertido' é uma experiência estética de curta duração, de registro facilmente assimilável, de fácil digestão, de prazer substituível. Em outras palavras, o 'divertido' é feito para o momento, não provoca nem requer elaboração, não causa incômodo, é experimentado apenas no consumo rápido. O convívio longo com alguém nunca é somente divertido; é também tenso, calmo, alegre, triste, complicado, simples - é afeito às vicissitudes de uma história, com as várias tonalidades estéticas próprias de uma vida. O que vale para as vidas, vale também para as potencialidades estéticas diante das obras de arte. Há obras de arte que não são divertidas, ou não são somente divertidas. Algumas nos levam à contemplação, outras a uma certa repulsa e atração ao mesmo tempo, outras são herméticas, outras ainda angustiantes, morosas, derrisórias etc.

E por isso mesmo as obras de arte que qualificam a experiência estética com outras sensações, sentimentos e adjetivos são importantes - porque enriquecem nossas possibilidades de mapear o campo dos afetos, dos sentimentos, dos pensamentos, do relacionamento consigo e com os outros; nos auxiliam, ao nos preparar, a fazer recordar, repetir e elaborar situações vividas (FREUD, 1914). E entre estas obras se encontram justamente muitas telas de Claude Monet que, se experimentadas como projeção multimídia e desenho animado se tornam outra coisa. E muitas vezes essa outra coisa é apenas 'divertida', deixando de lado a parte mais instigante do trabalho do artista.


Da série A Catedral de Rouen (Claude MONET, 1894), as telas Luz da manhã, a segunda, e Fachada leste sob a luz do sol, a primeira. 

Foi Monet, diante da reprodutibilidade da imagem assegurada primeiro pelas gravuras e em seguida pela fotografia posteriormente criticada por Walter Benjamin (1935), quem passou a trabalhar com e contra a reprodutibilidade das obras de arte de modo bastante original e provocador: Monet pintou diversas séries de pinturas de um mesmo objeto, com variações pequenas de ângulos e grandes variações de luz e atmosfera (p.e.: as séries dos montes de feno, da Catedral de Rouen, da ponte japonesa, das ninfeias). O efeito destas séries, ao contrário das séries de gravuras e fotografias, não é a repetição do mesmo nem a afirmação de uma perenidade, mas, ao contrário, a transmissão da incerteza da percepção, das cores, das formas...tudo é como é devido a certo ângulo, certa luminosidade, certa atmosfera, em certo tempo; então tudo é fluido, as essências se perdem, fica o devir. Mesmo a catedral de pedra se transmuta tal qual as imagens refletidas no lago das ninfeias. Registrar a efemeridade das coisas, sua inconsistência, desvendar a lógica angustiada por trás do 'divertido' (a de que nada dura) não é divertido.

Foi Monet quem, num movimento aparentemente contrário a este, reproduziu o corpo de sua esposa que havia acabado de morrer para, diante da sensação de perda, da putrefação que viria adiante, mantê-la ainda um pouco mais com ele. Eis um registro de um homem amando, sofrendo, desesperado para ainda olhar, tocar e acariciar com o pincel uma mulher que não estava mais viva. No entanto, Monet poderia muito bem tê-la pintado como antes a pintou diversas vezes - viva, posando para ele jovialmente -, mas sentiu que precisava registrá-la morrendo/morta. Talvez como despedida, como trabalho de luto. Registrar a morte de quem a gente ama não é divertido.

Camille Monet no seu leito de morte (Claude MONET, 1879)

Foi Monet também quem, ainda no começo de seu percurso, sob a influência do realismo de Camille Corot, não pintou somente paisagens bonitas, mas também paisagens banais. Dar visibilidade ao banal tem o sentido contrário da experiência do divertido; nos provoca mostrando que esperar apenas pelo grande momento nos faz deixar de ver e fruir os outros momentos da vida. Os simples, os comuns. Não o 'incrível!'.

Num dos primeiros textos deste blog eu havia mencionado um artigo de Freud, "Sobre a transitoriedade", de 1916; disse também que voltaria a ele. Eis, enfim, a oportunidade. Ali Freud nos apresenta um diálogo com um poeta a respeito da fruição da beleza. O poeta afirma que para ele é impossível fruir da beleza de uma rosa ao saber que ela murchará e morrerá em pouco tempo; para o poeta a morte é feia e só o eterno é belo. A partir de outros textos quase contemporâneos do próprio Freud [p.e.: "Reflexões para tempos de guerra e morte" (1915), "Luto e melancolia" (1917)], podemos entender que esta posição estética que Freud enxerga no poeta implica um quadro melancólico.

Uma das obras em que Monet representa o banal: O caminho para a Quinta de Saint-Simeón, perto de Honfleur (Claude MONET, 1864)

O quadro melancólico tem sua estética própria. Ele é marcado pela paralização do trabalho de luto pois o eu está identificado de tal forma ao objeto perdido que, ao perder o objeto, o eu perde a si mesmo, perde o próprio valor, perde o amor próprio, perde o sentido de existir. É a tentativa de significar a existência como valendo a pena somente se for bela e narcísica o que leva o poeta a sequer amar a flor em sua existência frágil, efêmera e impotente; ele se volta para a fruição do lamento pela felicidade impossível. Freud se posiciona de modo diferente: para ele é preciso sustentarmos o reconhecimento da temporalidade das coisas não como condição de beleza, mas como condição de nossa existência enquanto fruidores. Sua intervenção é sobre a experiência do eu, no final das contas. O eu pode encontrar prazeres e sentidos diversos para a vida ao longo de sua existência - e não se cristalizar numa única expectativa de imagem de si e do objeto de amor idealizado. Vale lembrar que todo o trabalho de Freud - inclusive sua clínica - é direcionado à quebra da relação de submissão do eu a seus ideais.

Monet parece ter, em sua obra, feito algo semelhante a Freud, mas por outras vias. O Impressionismo como um todo não se trata somente de uma coletânea de efeitos e cores incríveis e divertidos; ele é uma transgressão ao ideal de que a obra de arte deve ser solene, representar momentos épicos, eternizar imagens, dar solidez ao percebido e, assim, segurança de que o eu e o objeto permanecem sempre os mesmos, ao longo do tempo.

Que este outro Monet seja também transmitido, para além da aliança atual entre perenidade e durabilidade. Diferente de outrora, parece que a transitoriedade dos objetos é aceita hoje em dia, mas não em sua radicalidade (não se aceita o próprio eu como objeto transitório); ela só é aceita contanto que os momentos sejam divertidos e consumidos por um eu que ainda se quer ver sólido, o mesmo, o forte, o potente e narcísico. Pois que Freud e Monet mostrem para nossos contemporâneos, mais uma vez, que o eu não se sustenta como uma estátua ou uma armadura sem muito sofrer, mais vale, para desfrutar esteticamente da vida comum, concebê-lo como algo em devir, em transformação, como imagens num lago, como luminosidades cambiantes ou como as últimas imagens do pintor francês: borrões que lembram mais Jackson Pollock do que os belos campos de papoulas de antes.

Uma das últimas pinturas de Monet, A ponte japonesa (1922-24)

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