A polissemia das máscaras
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Fim de semana de Carnaval em abril.
Aproveito a ocasião para, então, escrever o que eu teria escrito na ocasião do Carnaval e que ficou para segundo plano por conta do início da guerra da Rússia contra a Ucrânia. A guerra continua, é verdade, mas dessa vez não deixarei de falar das máscaras.
As máscaras não são exclusivas do Carnaval, mas nessa época do ano elas se tornam um interessante símbolo dessa festa. O sentido mais corriqueiro que se dá para o uso das máscaras, e parece ser aquele presente no Carnaval de Veneza e nos bailes de máscaras barrocos, é o seguinte: as pessoas vestem máscaras para se manterem no anonimato e, assim, poderem se sentir livres para dizer, fazer e atuar o que não se sentiriam encorajados a fazer caso todos soubessem quem elas são. É o sentimento semelhante de quem resolve, numa viagem para um destino em que não conhece ninguém, viver mil estripulias. É também a situação daqueles valentões da internet que escrevem o que bem entendem, porém utilizam um perfil falso para se esconderem.
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Carnaval de Veneza |
Ora, mas esse é apenas um dos sentidos que esse objeto, a máscara, pode vir a ter. O sociólogo estadunidense Richard Sennett, em O declínio do homem público: as tiranias da intimidade (1977), apresenta uma análise muito interessante da cultura europeia do século XVIII. O autor propõe pensarmos sobre toda aquela parafernália com que homens e mulheres da burguesia e da nobreza se enfeitavam e se maquiavam - perucas, rouge, batom, pó de arroz, roupas extravagantes, leques, medalhas, saltos altos...eles de fato se 'montavam' para sair à rua, ao âmbito público. Naquela cultura do Antigo Regime, era fundamental tanto a demarcação de diferença entre o espaço privado e o espaço público, quanto a afirmação do status quando no espaço público. Na esfera do privado, o indivíduo poderia relaxar, se sentir natural, e na esfera pública, era preciso, através das máscaras que vestia, realizar uma performance que condizia com sua posição social. Estas máscaras, portanto, neste contexto, não serviam para esconder, mas sim para informar a respeito do status do indivíduo, orientar todos os indivíduos a respeito de sua posição e performance social, conferiam um aspecto de ritual áulico ao cenário público, e, finalmente, garantiam ao indivíduo a experiência, em contraste, de relaxamento doméstico, a valorização de um lar como espaço de espontaneidade e verdade íntima.
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As senhoras Waldegrave (Sir Joshua REYNOLDS, 1780) |
Nietzsche, ainda antes de Sennett, já havia mostrado, em O nascimento da tragédia (1872), que uma máscara nem sempre tem a função de esconder. Neste estudo da primeira fase do filósofo alemão, o foco sobre o uso de máscaras no ritual religioso de adoração a Dionísio, na Grécia Antiga, o qual deu origem ao teatro, não é sobre a máscara como o que oculta, mas sobre a máscara como o que investe o usuário de um poder. Ao usar a máscara, o ator não fingiria, ele se transformaria em quem ele representa. A máscara funcionaria quase como um objeto mágico, um canal, uma senha para a mutação ritual. Me parece que o Carnaval carioca favorece mais este tipo de experiência da máscara, em que as pessoas se mostram outras, do que o do ocultamento veneziano.
Nos termos do filósofo, a imagem do personagem apolíneo é ocasionada pelo fluxo de potência dionisíaca que se enforma a partir da máscara. A máscara, em Nietzsche, seria, portanto, uma condensação da força dionisíaca numa imagem apolínea...que poderia, em seguida, se dissolver para formar outra imagem noutro momento. Pode-se dizer, neste sentido, que o ator não é somente um artista, mas, em Nietzsche, um modelo do modo como se forma uma subjetividade.
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Carnaval de rua no Rio de Janeiro (Tomaz SILVA, 2019) |
Freud, por sua vez, também trará contribuições interessantes para uma análise da máscara. Ele nos ensina que nosso eu é, por assim dizer, uma máscara. Em "Sobre o narcisismo: uma introdução" (1914) e O eu e o isso (1923) aprendemos que o eu, antes de ser uma figura que traz a verdade sobre o âmago subjetivo, é um objeto de investimento dos pais; ele se modela para satisfazer esses outros cujo amor dá sentido à sua existência, ele se torna o que aqueles querem ver e busca esconder o que eles não querem ver. Toda essa modelagem do eu ocorre, portanto, tendo em vista o fato de que a criança estaria em absoluto desamparo caso não fosse investida de amor pelos pais. Um resultado disso é que o eu é uma espécie de marco da ancoragem do sujeito no amor desses outros primordiais, outro resultado é que tudo aquilo que existe no sujeito e poria em risco o amor dos outros e de si mesmo é tornado inconsciente por uma defesa chamada recalcamento. A cisão entre o eu e o inconsciente se torna, aqui, constitutiva de um modo de subjetivação no qual a preservação do narcisismo contra qualquer coisa que exponha os furos dessa imagem se torne uma prioridade (sempre para sustentar o eu como objeto de amor).
Esses outros primordiais, os pais, são introjetados pelo eu como uma tentativa de assegurá-los, de não perdê-los, o que leva à formação do supereu. O efeito desta introjeção é que o eu não é mais capaz de esconder o que há no inconsciente do olhar e das críticas dos pais introjetados (ou seja, do supereu), de modo que passa a temer os ataques e o abandono destas figuras de autoridade internalizadas. A tentativa de preservar os objetos de amor ocasionou a preservação do ódio contra o eu também. O medo que o eu tem do supereu é, assim, um medo de ser desmascarado.
Ora, então, pode-se dizer, por outra via, que se o eu é uma espécie de máscara que o sujeito veste para ser amado, ele é, ao mesmo tempo, uma máscara que garante também que será odiado e atacado pelo supereu, o que revela o seu masoquismo. Além do mais, é preciso dizer que o eu é também uma máscara para si mesmo - afinal, o recalcamento é uma defesa que faz o eu esquecer memórias, mas é uma defesa efetuada pelo próprio eu. Por isso Lacan pôde dizer que o eu não quer saber a verdade sobre si (LACAN, 1954-55).
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Máscaras confrontando a morte (James ENSOR, 1888) |
Mas o jogo de máscaras que Freud estabelece na formação do sujeito não para aí. Pode-se dizer que há, na relação com a realidade externa, mascaramento não só de si para ser amado, mas também se mascara a própria realidade. Explico: o sujeito busca viver na realidade o reencontro do objeto perdido que teria lhe conferido uma experiência de satisfação - esse é o próprio sentido do conceito de desejo em Freud (1900). Não se recupera a experiência ou o objeto perdido, mas, ainda assim, através do teste de realidade, buscamos nos iludir ao crer encontrar na realidade novamente o objeto do desejo. Para tanto, nos valemos das fantasias e devaneios que modelam nossa experiência de modo que, com esse recurso, acreditamos numa garantia de prazer. Logo, pode-se pensar a percepção como uma máscara: máscaras determinam certo enquadramento da realidade e certos apagamentos também, formam uma moldura do mundo e um modo dos outros reagirem a nós (LACAN, 1964).
Certamente a obra de Freud poderia nos encaminhar para outras discussões a partir do tema da máscara (por exemplo, o fetichismo [FREUD, 1927] ou a formação do caráter [id, 1923]), mas já avancei o suficiente para apresentar, hoje, uma espécie de conclusão.
Após esse breve percurso pelas máscaras tal como Sennett, Nietzsche e, sobretudo, Freud as utilizaram para pensar as subjetividades, percebo que algo explodiu: a garantia de que se sabe muito do que não é máscara, ou seja, uma suposta aliança entre a realidade e uma verdade inequívoca. A realidade é deformada pelo sujeito, o eu - enquanto objeto - é uma máscara sedutora, o próprio sujeito só se afirma através das máscaras. Fora da máscara há um porvir, uma possibilidade de mudanças, de novidades, do impensável até então - talvez isso seja um outro modo de indicar o inconsciente e a angústia que se sente ao se aproximar dele: angústia, afeto que - esse sim - não mente, não engana, não mascara, como se lê em Lacan (1962-63). Será também Lacan quem repetirá que a verdade só chega a nós mascarada, só pode ser meio-dita (id, 1970-71) e que pensará o real como sendo o limite do campo simbólico, portanto, como o que escapa às palavras e ao sentido, o real é o impossível de capturar (id, 1971-72).
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Máscara do Teatro Grego antigo, representando Zeus |
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