A morte no rock e a morte do rock
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Neste sábado dia 26 de março li a notícia de que o baterista da banda de rock Foo Fighters, Taylor Hawkins, morreu aos 50 anos, num quarto de hotel em Bogotá. Comenta-se, então, na minha cabeça: 'Puxa, mais um rockeiro que morre jovem'. No entanto, lembro que quando Elvis Presley, o 'rei do rock' morreu, em 1977, aos 42 anos, dizia-se que já estava velho para o rock'n'roll, parafraseando a canção da banda inglesa Jethro Tull, lançada um ano antes, Too old to rock and roll, too young to die (Ian ANDERSON, 1976) [traduzo: "Velho demais para o rock and roll, jovem demais para morrer"].
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Elvis Presley (Andy WARHOL, 1963) |
Gostaria de conversar com o leitor, então, um pouco sobre as ideias de juventude e velhice que se insinuam nestas impressões e sobre os estilos de vida ligados a essas ideias.
Diversos artistas da música popular estadunidense, britânica, brasileira etc sejam do jazz, do rock, do samba, da MPB, do Pop etc tiveram um tempo de vida curto, aos olhos de seus pares e de seu público, que lamentaram profundamente mortes ocorridas aos míticos 27 anos, como as de Robert Johnson, Brian Jones, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Kurt Cobain e Amy Winehouse. Outros que não morreram nesta idade coincidente também foram lamentados por sua morte considerada precoce como, no Brasil, Noel Rosa, Elis Regina, Clara Nunes, Cazuza, Renato Russo e Cássia Eller, ou fora do Brasil, como Buddy Holly, John Lennon, Michael Jackson, Chris Cornell e Prince, para citar os casos mais conhecidos.
Para se compreender esta abordagem que faço do tema de um estilo de vida que se associa a uma vida curta - o tal estilo de vida de artistas musicais populares (com destaque para o rock'n'roll), geralmente movido a noitadas, turnês incessantes, sexo, drogas e excessos - trago aqui uma importante ferramenta desenvolvida pelo filósofo Michel Foucault: a noção de biopoder.
Foucault, em A história da sexualidade 1: a vontade de saber (1976) e no curso no College de France Em defesa da sociedade (1975-76) apresenta a ideia de que, na modernidade, especialmente a partir do século XIX, vai-se aos poucos se estabelecendo um novo modo de exercício do poder que se conjuga aos anteriores. Até então Foucault havia demonstrado que o Antigo Regime se orientava principalmente por um tipo de poder, o do soberano, o qual se concentrava na figura do Rei e dele se irradiava para a sociedade, um poder que agia através do espólio, da interdição, da repressão, um poder negativo portanto, que, no limite, se autorizaria matar em nome do Rei ou do Senhor. Foucault também reconheceu que, paralelamente ao poder do soberano, aos poucos se alastrou pela civilização ocidental o poder disciplinar, oriundo de instituições disciplinares, mas, em seguida, na modernidade, constituinte de uma sociedade disciplinar (FOUCAULT, 1975). A característica deste poder é que ele incidiria diretamente sobre os corpos, micropoliticamente, individualizando-os, ele não focaria no soberano, mas no indivíduo que precisa ser normalizado. É um poder produtivo, no sentido de que produz comportamentos, produz um tipo de indivíduo, mais do que impede certas coisas de ocorrerem.
Já o biopoder aparece como um complemento, na macropolítica, do poder disciplinar, que também é produtivo, que também produz subjetividades. A lógica do biopoder é a da produção de vida, mas de uma vida objetivável, manipulável, contabilizável e tornada força a ser utilizada para a produção. É, portanto, intimamente ligado ao modus operandi do capitalismo, mas não é exclusivo a ele, como o super investimento soviético na ginástica atestava. É então - e somente então -, num contexto biopolítico, que a crença de que devemos orientar-nos a viver muito tempo e com o máximo de saúde física possível, de que devemos capacitar nossos corpos e mentes o máximo possível para que continuemos na cadeia produtiva social se torna lugar comum regulador da existência das subjetividades ocidentais. Aí está contida uma apreciação de como devemos viver, de um estilo de vida, uma medição do tempo de vida reconhecido como o esperado e um conceito de vida determinado pelo orgânico-produtivo. E assim, uma nova moral se estabeleceu.
Todavia o conceito de poder só faz sentido para Foucault na medida em que o poder sempre encontra limites, resistências, fenômenos de atrito que o tornam visível. Houve e há resistências voluntárias e involuntárias ao biopoder. O estilo de vida dos artistas românticos do século XIX, exaltando a experiência da marginalidade social, da doença como padecimento inspirador e o olhar sobre a a morte precoce como heróica foi um modo de subjetivação operado às sombras do biopoder, em choque com ele, insolente - e, por isso mesmo, causador de escândalo numa sociedade que prezava pela saúde e pela vida longa e útil.
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Pete Townshend quando jovem |
Os artistas do século XX, em especial os artistas musicais populares da segunda metade do século, reatualizam um estilo de vida crítico, insurgente contra o biopoder, como se tornou patente no verso de Pete Townshend (guitarrista, cantor e compositor da banda de rock The Who) na canção My Generation (TOWNSHEND, 1965): "I hope I die before I get old" (traduzo: "Eu espero morrer antes de ficar velho").
Freud, em "Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna" (1908) sustentava uma psicanálise alinhada à biopolítica, na medida em que sugeria transformações na cultura sexual da civilização moderna que ele acreditava que diminuiriam as incidências de psiconeuroses e tornariam os corpos mais saudáveis e úteis. Porém,ja nos textos "Reflexões para tempos de guerra e morte" (1915), Além do princípio do prazer (1920) e Mal-estar na civilização (1930) percebe-se que mudou de ponto de vista. Eles retiram qualquer dúvida a respeito de seu reposicionamento, nesta altura de seu percurso, sobre o assunto. A concepção da vida como conflito entre pulsões de vida e de morte e o abandono da ideia de que se sabe qual é o melhor estilo de vida para cada um, ou seja, a sustentação do argumento de que o caminho para a felicidade é construído singularmente pelo sujeito, de que ele não está dado de antemão pela norma moral, tornam evidente a suspensão da moral e a crítica ao poder que marcam o campo psicanalítico. A vida é o caminho que cada um de nós traça em direção à morte, não é um único caminho.
Portanto, mesmo utilizando de instrumentos foucaultianos, é como psicanalista que reafirmo que no rock'n'roll lifestyle há algo bastante contestatório ao american way of life e à normalização biopolítica da vida e que isso não é motivo de juízo moral, mas de escuta de algo dito daquela maneira. Aliás, a psicanálise também critica a hegemonia destes valores que marginalizam outros estilos de vida, subjetividades não comportadas e, às vezes, inconformadas - o desejo revelado na análise é uma força transgressora que, muitas vezes, se expressa antes como ato do que como palavra. Mas também há convergências insuspeitas do rock com aqueles campos com que se atrita, cabe dizer: ao mesmo tempo em que o estilo de vida cheio de excessos de prazer e dor resiste à saúde e à vida longa, ele desmascara um sonho, uma fantasia pós-moderna capitalista, a de não deixar para depois o gozo que posso ter hoje - e aí a psicanálise não acompanha o rock, oportunizando a elaboração também desta fantasia, abrindo uma escansão entre a fantasia e sua atuação.
Mas voltemos ao rock. É no terreno dos limites, nas bordas das promessas que o capitalismo de consumo nos coloca que se situa o estilo de vida do rockeiro - contestatório à objetivação normativa da vida e ao mesmo tempo aderido ao imperativo de gozo do discurso do capitalismo (LACAN, 1971). É neste limiar que ele funciona, se for muito além se torna um novo estilo normativo para um novo capitalista, se for muito aquém deixa de afetar os outros com sua subversão e se torna solipsista.
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Padre Marcelo Rossi quando jovem, imagem retirada do site www.letras.mus.br |
O que impediu que nossas sociedades neoliberais tomassem como modelo o estilo de vida rockeiro é, por um lado, o ideal biopolítico de tornar a vida útil na produção pelo maior tempo possível, mas também a aliança neoliberal da biopolítica com o poder soberano religioso. Ao menos no que diz respeito ao cristianismo, religião dominante nestes países a que me referi nominalmente: Estados Unidos, Reino Unido e Brasil. O cristianismo do Antigo Regime era marcado fundamentalmente pela mortificação do corpo, pelo horror aos prazeres, pela desvalia desta vida e pela preparação para a vida santa no Além. Muito diferente da 'Aeróbica do Senhor' do Padre Marcelo Rossi - e de um modo geral, do catolicismo carismático -, e muito diferente também da teologia da prosperidade que orienta algumas denominações neopentecostais, na qual as conquistas realizadas aqui neste mundo são a evidência da graça de Deus. O corpo é ressignificado no cristianismo neoliberal, não é mais o corpo do martírio, é o corpo como performance da graça divina, é o corpo saudável como indício de prosperidade. A um corpo dividido entre o saudável e útil e o doente e inútil se sobrepõe outro corpo, o dos prazeres divinos e dos prazeres do Diabo, o do Bem e o do Mal.
O enlace de biopolítica, neoliberalismo e religião tornou comum olharmos para o corpo e a vida como bens a serem cultivados, tornados prósperos, saudáveis e úteis neste mundo pelo maior tempo possível. E uma normalidade se instituiu no imaginário de nossa civilização.
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Raul Seixas |
Não por acaso, Raul Seixas (outro que morreu antes do que se esperava) escreveu que O Diabo é o pai do rock (1975). Há algo de demoníaco no rock, uma transgressão à vida normalizada e sacralizada dos homens e mulheres de bem. O Diabo está nos gritos, no gestual, nas danças, nos cabelos, nas roupas, na música...na atitude. A vida do rockeiro (artista e público) é uma experiência transgressiva, subversiva e crítica, em ato. É interessante lembrar aqui, então, que Freud se refere ao que vem do inconsciente e se repete compulsivamente desafiando a capacidade de produzir sentido como o demoníaco (FREUD, 1920). A psicanálise escuta o demoníaco, não o rejeita; ao contrário, tenta oferecer a ele a possibilidade de, através de sua força transgressiva, produzir novos sentidos. E assim, a psicanálise acaba tendo um destino parecido com o rock numa cultura que não tolera nenhum sinal do demoníaco: é demonizada.
Se a vida do rockeiro é subversiva, sua morte, como parte da vida é também um ato transgressivo. É nesse sentido que devemos compreender as vidas curtas de diversos rockeiros, em extensão temporal e na utilização da produção capitalista. É um ato de resistência, no sentido foucaultiano. Mas porque se diz, então, que o mais famoso rockeiro, Elvis, morreu velho, quando tinha 42 anos e quanto a outros que morreram mais tarde e com mais idade, entende-se que morreram jovens?
Elvis morreu como rockeiro muito antes de sua vida orgânica parar. É esse o sentido do olhar sobre Elvis como envelhecido na data de sua morte. Há aí uma equação entre juventude e vida, por um lado, e velhice e morte por outro, certamente típica do biopoder. Porém, quero indicar o ponto de resistência a este poder aqui - esta operação foi retorcida no mundo do rock para significar: a juventude só vale a pena ser vivida como transgressão ao poder e, ao mesmo tempo, a vida é jovem enquanto se mantém essa transgressão crítica, mesmo com cabelos brancos (como mostra Roger Waters), esta subversão é um estilo de vida para toda a vida. É este o sentido do verso de Townshend reproduzido mais acima, artista que, aliás, continua vivo, chegando na casa dos 80 anos. Elvis deixou de ser transgressivo quando se alistou no exército estadunidense, se tornou comportado e passou a se apresentar em cassinos; é por isso que, do ponto de vista do estilo de vida rockeiro, o Rei morreu.
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Roger Waters quando velho...e, no entanto, ainda jovem |
Tem-se dito por aí que o rock também morreu. Aliás, de Elvis se diz que não morreu - o que é significativo! Parece que os fãs do cantor comportado (que não era mais o inicial The Pelvis) não querem aceitar seu último gesto transgressivo, que poderia lhe dar ainda um vulto de rockeiro, depois de muitos anos: a morte por overdose.
E parece que ambos morreram mesmo. Parece que o rock se tornou ou status quo, nada transgressivo, bastante comportado para alguns, e experiência quase solipsista de entendidos que ainda cultuam secretamente o lado demoníaco do rock, de outro, quase como pertencentes a um clube de vinhos ou de colecionadores de raridades.
A própria morte de Taylor Hawkins remete um pouco à morte do rock. Não que ele fosse o último rockeiro. Não é por aí que sigo. Quero dizer é que esta morte já não é ocasião de um grande susto, de escândalo, de um acontecimento transformador como foram as mortes de Hendrix, Lennon, Cobain ou mesmo Amy Winehouse. Acrescento ainda: este artista morreu aos 50 anos e aos nossos olhos de 2022 parece jovem...exatamente porque o critério biopolítico de avaliação da vida se impôs ao critério rockeiro de um modo ainda mais acachapante. Os cuidados com o corpo biológico dos nossos contemporâneos, através de diversas tecnologias da saúde, da força e da beleza, fazem com que olhemos para um corpo com 50 anos de vida e vejamos muito mais juventude orgânica do que num corpo de 40 anos de décadas atrás. Até mesmo quem tem a idade legal categorizada como idoso, ou seja, acima dos 60 anos, parece bem mais flexível, sem rugas, forte e vicejante biologicamente do que nossos antepassados com a mesma idade.
Porém, do ponto de vista rockeiro, Hawkins já não era mais nenhum transgressor; a própria Foo Fighters é um projeto de Dave Grohl, ex-membro da transgressiva Nirvana, que montou uma nova banda mais adequada ao gosto dos comportados - basta assistir ao vídeo do show do Foo Fighters no Austin City Limits e o que se verá é um público que aqui no Brasil seria etiquetado como 'mauricinhos' e 'patricinhas', bons moços e boas moças muito respeitosos num cenário muito diferente do que foram os anos loucos de Nirvana. Parafraseando Marx, a História se repete como farsa.
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Taylor Hawkins, nesta foto mais galã que rockeiro |
A morte do rock é exemplar dos tempos em que vivemos: a união calamitosa entre cristianismo, neoliberalismo e biopolítica não dá mais espaço para porras-loucas. Mas se a subversão deve testar sua força, é nessas ocasiões que isso deve acontecer mesmo. Seja o rock, seja a psicanálise, ambos precisam lutar bastante para existir num mundo de Rock Gospel e uma tal de Psicanálise Cristã.
TOCA RAUL!
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