Para os ressentidos, as loiras!
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Recentemente, o deputado estadual pelo estado de São Paulo, do partido Podemos e membro do MBL, Arthur do Val, vulgo 'Mamãe Falei', teve alguns áudios de Whatsapp grosseiros (para dizer o mínimo) vazados. O contexto era o seguinte: ele e seu colega de MBL Renan Santos viajaram para a Ucrânia alegando oferecer ajuda humanitária ao povo daquele país. Mas o que se escuta nos áudios nada tem a ver com ajuda humanitária nenhuma; neles Arthur não sabe ao certo em que fronteira está, mas tem certeza quanto a um assunto - que retornará à Ucrânia em 2023...não para fornecer ajuda humanitária, mas para fazer turismo sexual com as loiras ucranianas que seriam "fáceis porque são pobres" (sic) e ainda descreveu algumas fantasias sexuais que se disporia a realizar com elas que não estou muito interessado em reproduzir aqui.
Como se sabe, a repercussão destes áudios levou o deputado a ser afastado do MBL, o pré-candidato a presidente Sérgio Moro a tentar desvincular sua imagem da do até então próximo apoiador e a toda uma série de críticas muito bem colocadas ao sexismo e ao cinismo de 'Mamãe Falei', que dizia estar preocupado com os ucranianos quando parecia estar bem mais ocupado em colecionar troféus sexuais de mulheres que não eram outras senão as refugiadas pobres, provavelmente algumas traumatizadas com a guerra, desamparadas em busca de uma ajuda e que provavelmente se sentiriam em dívida com uma alma caridosa que lhes desse a mão e um punhado de dinheiro.
Ainda se disse, com justiça, que Arthur do Val, defensor ferrenho do liberalismo, com seu áudio expressou a verdade obscena de uma certa elite neoliberal: "elas são fáceis porque são pobres". Quanto mais desamparado o indivíduo, mais fácil de se entregar masoquisticamente ao gozo daquele cuja performance emula potência - fórmula já desenvolvida pelo psicanalista Joel Birman em seu Mal-estar na atualidade exatamente para descrever certa dinâmica perversa nas relações humanas em tempos de neoliberalismo (2000).
Pois bem, tomo um personagem de um famoso romance para traçar um paralelo com Arthur do Val. O romance a que me refiro é Os miseráveis (1862), de Victor Hugo. E o personagem se chama Thénardier. Não se trata do herói da história.
Victor Hugo (fotografia de NADAR [Gaspar-Félix Tournachon], 1870) |
Arthur do Val é filho de um empresário, mas não de um grande empresário. Seu pai é dono de uma empresa de sucata, negócio sem o glamour que a high society paulista valoriza. Arthur não se insere numa elite tradicional paulista, portanto; por exemplo, sequer terminou sua faculdade de engenharia química, o que, convenhamos, na cultura de elite econômica brasileira não é considerado um sinal de status, muito pelo contrário. Também não é proletário, sem dúvida - longe disso. Está entre um e outro. O MBL e os seus vídeos no YouTube 'lacradores' anti-esquerda e pró-liberalismo lhe deram, finalmente, um status até então improvável, o que lhe garantiu, aliás, uma eleição como deputado estadual e muitos admiradores. É um tipo bem contemporâneo que se apresenta como 'anti-político, porém político' semelhante seja ao presidente da Ucrânia, Zelenski, a Donald Trump, ou ao presidente do Brasil, Jair Bolsonaro (mesmo este tendo uma longa carreira política de parlamentar, se apresenta como anti-político) ou ainda ao seu maior aliado entre as figuras de vulto no campo político recente, ao menos até ontem, Sérgio Moro, o juiz-político anti-político.
Thénardier, o personagem criado por Victor Hugo, é apresentado como uma pessoa grosseira, porém com a inteligência, a esperteza e a astúcia de uma raposa, que não é nem da classe média nem da classe inferior:
"Essas pessoas pertenciam àquela classe bastarda, composta de gente grosseira que subiu na vida e de gente inteligente decaída, que está entre as chamadas classe média e classe inferior, e que combina alguns defeitos da segunda com quase todos os vícios da primeira, sem ter o generoso impulso do operário, nem a honesta ordem do burguês" (HUGO, 1862, p.195).
Thénardier é um sujeito sem escrúpulos, que quer 'se dar bem' na vida. Esse tipo definido se assemelha bastante daquele que, alguns anos depois, Friedrich Nietzsche primeiro apresentará sob o nome de filisteu da cultura (1873) e depois reelaborará na moral do ressentimento (1887). Em outras palavras, trata-se de figuras destituídas de poder que manejam sua fraqueza fazendo dela sua força através do que o filósofo alemão chamou de transvaloração dos valores. Elas alimentam um ódio por quem exerce o poder, por quem nem reconhece sua existência, o tomam como os maus e se identificam aos bons, a quem não recebeu 'o que merecia', e, para alcançar seu objetivo, abraçam a destituição e a destruição daquele outro como valor - todo o seu movimento é uma tentativa de alcançar o poder que tanto odiaram e secretamente invejaram; não realizam, portanto, uma crítica, mas aderem a uma vontade ressentida de 'ir à forra', de se vingar e gozar como imaginaram o seu inimigo fazer.
Hugo descreveu a figura do ressentimento antes de Nietzsche, e nenhum dos dois anteviu plenamente o que ela poderia realizar: tanto o fascismo quanto os 'políticos anti-políticos' de hoje.
Jean Valjean resgata Marius nos esgotos de Paris (Mead SCHAEFFER, 1900) |
Mas a comparação com Thénardier vai além. Ao final de Os miseráveis, o herói do livro, Jean Valjean, aparece como alguém que se infiltrou no meio da batalha, da guerra civil que foram as revoltas, em Paris, de 1832. Ali ele se sacrifica para salvar a vida de Marius, um combatente moribundo e desamparado, fugindo com o rapaz nos ombros para os esgotos da cidade até finalmente, após muito esforço, muito caminhar, após a exaustão chegar no limiar de sua própria sobrevida, reencontrar a luz do dia, salvar o jovem combatente e, ao mesmo tempo, sua própria alma dos tormentos de sua consciência moral por conta dos pecados de seu passado. O sacrifício santo, heróico, traria o bem e a luz para o rapaz e para o beatífico pecador Jean Valjean, o que tem por efeito a admiração do leitor pelo incrível personagem criado pelo gênio de Hugo, um símbolo do herói moderno, um homem que lutou contra todas as misérias que a modernidade impõe a todos nós, ele que também quis ser aceito como um bem sucedido capitalista, e que não deu certo, mas ainda assim, fora da disputa pelo status social, continuou querendo ser um homem bom, porém nas penumbras das ruas de Paris. Arthur do Val talvez quisesse propagar esta imagem para o público brasileiro, ser uma espécie de Arthur do Valjean. Mas os áudios vazados o fizeram se parecer mais com o vilão, e não o herói da história. O vilão é Thénardier.
Quem leu o romance de Hugo talvez lembre dessa importante passagem: a magistral descrição que o romancista faz da famosa Batalha de Waterloo, que traçou o destino da França, da Europa, do Ocidente. Pois bem, Thénardier participa da epopéia bonaparteana. Porém, não em um lugar muito honroso. Após a carnificina ter ocorrido, e após Napoleão e a França terem sido derrotados, de noite, restam muitos mortos no campo de batalha:
"Por volta da meia-noite, um homem vagava, ou melhor, rastejava pelos lados do barranco de Ohain. (...) nem aldeão, nem soldado, mais vampiro que homem, atraído pelo cheiro de mortos, tendo como vitória o roubo; vinha a Waterloo para saquear" (HUGO, 1862, p. 397).
Thénardier roubava o que encontrava 'de valor' nos mortos, nos feridos e nos desamparados da guerra (entre eles o pai de Marius) - não foi isso o que, de outra maneira, fez Arthur do Val? Se o gozo de Thénardier era com dinheiro, o do brasileiro é com loiras refugiadas. Claude Lévi-Strauss já propôs, no estabelecimento de sua antropologia estrutural (1957), que a cultura é a instituição da troca entre os homens: troca-se dinheiro, palavras, coisas, mas, antes de tudo isso, os homens já trocavam mulheres - e aí estaria o âmago duro e machista de nossa cultura (que nos cabe criticar e, quem sabe, transformar), e que reaparece nos áudios de 'Mamãe Falei' como circuito de base repetido inconscientemente.
Claude Lévi-Strauss |
Mas as mulheres que Do Val quer não são quaisquer mulheres. São as loiras. E aí aparece com bastante clareza a figura do ressentimento. A loira como imagem do troféu porque é a mulher rara no Brasil e mais do que isso: porque é branca, muito branca, sem miscigenação com as negras, indígenas, árabes, orientais. A loira como símbolo de gozo secreto dos poderosos estadunidenses e europeus, como reserva de gozo do colonizador - a ser invejado. E aqui brinco de romancista e imagino um solilóquio crível do ressentido em questão: 'Porque eu também não posso possuí-las, as loiras? Mas claro que eu posso! Posso me aproveitar de que lá na Ucrânia elas existem em abundância e, mesmo que pobres, ainda servem de troféu para um ressentido, um colonizado que sonha em gozar como o colonizador goza com suas loiras fogosas. Como elas são pobres e desamparadas ao fugir da guerra, eu talvez consiga uma brecha para entrar na festa em que fui barrado; afinal, as loiras ricas de São Paulo são difíceis; a balada brasileira é bem mais difícil que a fila de refugiados, mas se eu desfilar com uma loira do leste europeu em São Paulo...aí eles vão ver, vão ver que eu também posso!'.
A psicanálise nos ensina que muitas fantasias que habitam nossa mente não são uma criação solipsista, a produção de um sujeito desvinculado da cultura em que está. Freud nos mostra isso em diversos momentos de sua obra, mas destaco que em Totem e tabu (1913) e História de uma neurose infantil (1918) sustenta claramente a hipótese de que há fantasias que são herdadas filogeneticamente, isto é, que seriam transmitidas de geração em geração de modo inconsciente. Esta ideia será reapresentada diversas vezes em seus trabalhos até, novamente, em seu último livro, Moisés e o monoteísmo (1938). Alguns leitores interpretaram esta intuição insistente de Freud como uma aposta numa herança biológica, como um presságio do DNA da psiqué; não precisamos desta ficção científica para mantermos a ideia fundamental contida no texto freudiano. Jacques Lacan, por exemplo, através de suas reflexões a respeito da subjetivação como uma inserção do sujeito num certo lugar, num campo simbólico anterior e condicionante da sua própria existência (LACAN, 1953), apresenta uma hipótese plausível sem precisar de nenhum constructo estritamente geneticista.
Para Lacan, o Outro 'bombardeia' o bebê de linguagem, mas não uma linguagem neutra, e sim uma linguagem já articulada em frases, períodos, enunciados que repetem articulações, associações de significantes de geração em geração, de modo a tecer um 'como falar', um 'o que falar' e, assim, repetimos automaticamente certas formas de falar/pensar sem refletir sobre seu sentido. Ao contrário, é ao se apropriar e se identificar a estas formas que o bebê poderá esboçar uma tomada de posição como sujeito (id, 1949). Ou seja, o sujeito se constitui a partir das fantasias transmitidas pelo discurso do Outro.
Pois bem, a inserção num jogo simbólico é já algum amparo diante de um mundo em que somos lançados sem saber como agir e, por isso, tanto acolhemos o mapeamento da existência a partir das fantasias herdadas do Outro quanto constituímos a realidade através destas fantasias, muitas vezes naturalizando-as. Isto é a alienação simbólica constitutiva de qualquer sujeito. Ora, é um esforço de qualquer psicanálise auxiliar o sujeito a perceber as fantasias que atua, que representa, que sonha e, além disso, procurar colocá-lo a examinar o que quer e o que não quer mais desta herança recebida da cultura em que foi criado. Esta contribuição da psicanálise pode desativar o ressentimento de cada um de nós, desativar a colonização subjetiva que há em cada um de nós e pode, por exemplo, fazer os semelhantes a Arthur do Val se perguntarem porque preferem loiras, porque preferem loiras pobres, porque preferem as fáceis, de onde vem isso e...se querem repetir isso ou não. Não creio que Arthur do Val tenha levado esta questão para uma análise - ainda dá tempo, tempo que Thénardier não tem mais, certamente.
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