O que a Rússia ensinou à psicanálise

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A principal medida adotada pelos países ocidentais, capitaneados pelos Estados Unidos da América, para frear a invasão russa da Ucrânia tem sido uma profusão de sanções econômicas e políticas à Rússia. Se ela é eficaz ou não, se ela já é um ato de guerra ou não são discussões que deixo para outros. Meu interesse, hoje, é refletir sobre tal ato a partir de algo que julgo uma extrapolação, e este é apenas um exemplo dentre vários: um russo piloto de fórmula 1, Nikita Mazepin, foi afastado por sua equipe estadunidense, Haas, e não disputará mais o campeonato. 

O que este piloto tem a ver com a guerra? Ou com Putin? Ou com a Ucrânia? Ele está pagando um preço por ser russo. Este é apenas um exemplo de vários atos semelhantes que estão acontecendo agora. Temos de tomar cuidado com ações como essas; certamente geram ou alimentam uma russo-fobia, um ódio aos russos, mesmo que estes russos nada tenham a ver com a guerra. Nesta lógica violenta, imaginária, os russos se tornaram os inimigos e, através de um procedimento estético-discursivo seria preciso que eles fossem isolados, que nenhuma mistura com eles fosse possível - não poderia haver nenhum valor no inimigo.

Pois vou, como é próprio de uma intervenção psicanalítica, tentar desmontar esta armadilha que apenas acirraria ódios e não auxiliaria em nada na elaboração do conflito. Escolho, portanto, uma característica importante da arte e da cultura russas para elogiar. O que nada tem a ver com um elogio a Putin ou à invasão, que não são nada elogiáveis, muito pelo contrário: importante deixar isso claro. A característica que valorizo é a dimensão do entrechoque e coabitação de forças conflitantes, justamente. Para mencionar alguns exemplos, a vemos em Dostoievski, Kandinski, Nijinski, na própria Revolução Comunista de 1917 e na obra científica de Prigogine.

Retrato de Fiodor Dostoievsky (Vassilij Grigorovich PEROV, 1872)

Freud escreveu um ensaio sobre Fiodor Dostoievsky (FREUD, 1928), o que minimamente já dá indícios de como a obra deste romancista russo foi importante para o desenvolvimento do pensamento psicanalítico. Ali Freud descreve o indivíduo Dostoievsky, mas também sua obra, como marcados por uma forte ambivalência. Ao mesmo tempo que o amor ao Pai, a submissão à sua Lei e moralidade são levados ao extremo na vida e obra do escritor russo, estão lá também o ódio, o desejo parricida, o egoísmo violento que desrespeita a Lei. Ambos estão lá num entrechoque neurótico, considerando a definição que Freud dá de neurose no texto em questão: a situação psíquica em que o eu não consegue formar uma síntese mental, de modo que o conflito entre o eu e o isso (o Inconsciente) se torna patente na vida do sujeito. Numa carta a Theodor Reik comentando seu trabalho sobre Dostoievski, Freud chega a dizer que o Dostoievski artista se assemelha a um Dostoievski psicólogo (aqui entendido, creio: psicanalista): ambos elaboram a neurose de modo a torná-la uma experiência criativa (id., 1929). Freud parece reconhecer que se identifica ao romancista russo, posto que, em sua autoanálise, se diagnosticou como psiconeurótico também (GAY, 1988); além disso, foi do material de sua própria psiconeurose que emergiram, por exemplo, algumas de suas grandes obras: A interpretação dos sonhos (FREUD, 1900), Psicopatologia da vida cotidiana (id,1901), "O estranho" (id, 1919) ou "Um distúrbio de memória na Acrópole" (id, 1936).

Mas não é tanto de sua identificação a Dostoievski que quero falar. E sim do que ele próprio acentuou como característica marcante do texto dostoievskiano: personagens cuja existência é marcada por conflitos psíquicos indeléveis e que, por isso mesmo, fazem o leitor sentir que está diante de algo da ordem da verdade em oposição ao sonho iluminista de subjetividades plácidas, felizes e racionais, movidas por interesses e não por pulsões

Dostoievski marca sua obra com uma característica estilística pungente: seu realismo duro nos põe diante das psiconeuroses, ambivalências, conflitos e contradições de suas personagens o tempo todo; sustentando-os ao ponto de reconhecermos ali uma condição humana trágica e incontornável que fala de nós mesmos em escala diferente. De O jogador (1866) a Crime e castigo (1866) e a Os irmãos Karamazov (1879), esta característica está sempre presente.

Aliança interna (Wassily KANDINSKY, 1929)

Vamos à arte de Wassily Kandinsky, o pioneiro da pintura abstrata. Diversas obras de Kandinsky são verdadeiros estudos de pares de opostos tentando harmonizá-los não como um encaixe de peças formando uma unidade, mas como um desencontro tenso mas sustentável entre, por exemplo, ângulos agudos e curvas, cores escuras e cores claras, movimento e estabilidade, borrões e linhas precisas, grande e pequeno, cores complementares e destoantes. 

Se em alguns artistas plásticos a escolha pela abstração guardou consigo seja uma tendência escapista deste mundo, seja um ideal de beleza platônico, depurando a produção de representações enganosas, em oposição à verdade da ideia  - e talvez as duas escolhas sejam, no fundo, a mesma (DELEUZE, 1981) -, esse não é o caso da totalidade da obra de Kandinsky. O percurso deste pintor certamente está relacionado ao idealismo revolucionário da Bauhaus, mas guarda particularidades: sua obra não nos coloca diante de um ideal de perfeição nem mesmo  de uma sensação de alívio; ela é tensa, estranha e nos lembra o tempo todo de nossos conflitos psíquicos. Talvez se possa dizer que Kandinsky jamais se livrou de vez da arte representativa: sua obra é uma constante representação da experiência psíquica do conflito e da ambivalência. 

À dança revolucionária de Vaslav Nijinski - o inventor da dança moderna - é atribuído tal adjetivo, entre outros motivos, porque faz do corpo masculino, forte e viril, uma massa sublimada no espaço e no movimento, tornada quase etérea, flutuante, com a desenvoltura e delicadeza que só se via até então nas bailarinas mulheres. Conflito entre peso e ar, entre virilidade e delicadeza, entre a performance esperada do homem e a da mulher, além do acréscimo de toda uma gramática gestual até então ausente da arte da dança erudita europeia que trouxe à baila ainda outro par de opostos: o heterodoxo e o ortodoxo do balé. 

Vaslav Nijinski

A revolução russa, marcada pela vontade de estabelecer uma sociedade comunista, na qual a opressão e a desigualdade seriam finalmente vencidas, permitindo aos russos viverem finalmente em liberdade, desde o início até a estabilização da União Soviética, estabeleceu o tempo todo contradições difíceis de superar. Uma revolução comunista que ocorreu num país que não era marcado pelo capitalismo industrial, e, portanto, sem uma massa proletária, mas sim camponesa; no qual a opressão perdurou, desta vez tentando estabelecer a igualdade - é verdade -, mas tornando a ideia de liberdade difícil de assimilar, como as tentativas de fuga, crítica ou encerramento do regime, ao longo da história da União Soviética e da Cortina de Ferro, nos lembram. Mas o sonho foi sustentado por muito tempo, apesar da ambivalência da ordem política estabelecida naquela sociedade (HOBSBAWN, 1994).

E, finalmente, o brilhante trabalho do químico, prêmio Nobel, Ilya Prigogine, nos ensina que em situações de grande instabilidade de um sistema - ou seja, distantes das condições normais de temperatura e pressão (CNTP) -, quando parece que o caos se impõe à ordem, naquele momento mesmo, se produzem novas ordens (PRIGOGINE, 1993). O melhor exemplo desta descoberta está na nossa cozinha: ferva uma panela de água e você não verá as bolhas subindo desgovernadamente, mas sim seguindo certos trajetos quase padronizados. Novamente vê-se a sustentação dos opostos numa mesma situação - e agora acredito já poder dizer com mais segurança que se trata de uma característica reafirmada de tempos em tempos na cultura russa.

Ilya Prigogine, 1977

Muito importante positivar esta característica. Relacionar-se com o contrário, com o diferente, com o oposto sem excluí-lo, mas, ao contrário, ver ali algum valor. O austríaco Sigmund Freud, na Primeira Guerra Mundial continuou a admirar o inimigo, a Inglaterra; O francês Jacques Lacan, após a Segunda Guerra Mundial, foi um dos responsáveis pela retomada e revalorização do estudo da obra do alemão filiado ao Partido Nazista Martin Heidegger. Os psicanalistas, portanto, parecem também positivar esta característica.

A psicanálise nos ensina que a alteridade nos habita; ensina também que rejeitar tudo que é diferente do eu diz respeito a uma dinâmica infantil na qual se tenta equacionar o eu ao prazer e ao que é igual; o que não é eu, que não é igual, por sua vez, é identificado ao desprazer, ao indiferente ou mesmo ao odiado (FREUD, 1925). Dividir o mundo dualisticamente entre os que estão comigo e os meus inimigos pode gerar situações constrangedoras como a posição do jornalista Carlos Sardenberg em discussão ao vivo com seu colega Guga Chacra, na GloboNews, nesta semana, à respeito da Rússia, mas pode fazer algo muito pior: pode levar a um ódio que desumaniza o outro, identificando-o ao mau, o que autorizaria a se fazer o que quiser com ele. Foi isso que os nazistas fizeram com os judeus (e nem por isso Lacan deixou de ler Heidegger), parece ser isso o que Putin realiza em seu discurso sobre a Ucrânia - e nem por isso precisamos rejeitar TODOS os russos e TUDO de sua cultura. 

Lenin, Trotsky e Kamenev motivam as tropas russas por ocasião da guerra russo-polonesa, 1920

Ao contrário, foram eles mesmos quem nos ensinaram, ao longo da história, com Dostoievsky, Kandinsky, Nijinski, com a Revolução de 1917 e com Prigogine, a reconhecer a impossibilidade de separar o bem do mau, o odiado do amado, o harmônico do tenso, o homem da mulher, a opressão da igualdade e a ordem do caos. A psicanálise também o reconheceu através do conflito entre eu e isso (FREUD, 1923) e na sustentação da ambivalência de sentimentos ou da bissexualidade fundamental de todo ser humano (id, 1905). 

Ela deve muito à cultura russa, este outro do ocidente, para pensar o outro que nos habita, ao menos pelo fato de que muito se aprendeu, mesmo no interior do pensamento psicanalítico, com três importantes personagens russos: um deles é Sergei Pankeyeff, o 'Homem dos lobos' (id, 1918 [1915]), que permitiu a Freud desenvolver sua teoria das fantasias originárias, da cena primária e do trauma. As outras duas personagens são duas das primeiras psicanalistas mulheres, cujas obras ainda são pouco revisitadas, mas nas quais há muito de interessante: Lou Andreas-Salomé, o fio condutor que ligou a influência de Nietzsche a Rilke e dos dois a Freud. Andreas-Salomé ainda trouxe contribuições à psicanálise que, mais tarde, apareceriam na pena de outros autores. Por exemplo, como se poderá ler na passagem a seguir, a autora, numa carta a Freud, antecipa a argumentação lacaniana de que o desejo se quer insatisfeito, que é desejo de desejo e que o sintoma neurótico/histérico atende justamente ao esforço de mantê-lo insatisfeito (LACAN,  1957-58):

"O grande problema do sexo não residiria então no fato de que ele luta não só para matar a sede, mas também consiste no anseio pela própria sede, que o alívio físico da tensão, da saciação, ao mesmo tempo desaponta, pois diminui a tensão ou a sede, enquanto a doença, e, até mesmo a doença através de insistentes substâncias sexuais do corpo, não tem outro propósito senão este?" (ANDREAS-SALOMÉ & FREUD, 1915, p. 40)

E Sabina Spielrein, que ousou desenvolver uma teoria e clínica da esquizofrenia num momento em que Freud defendia que a psicanálise não funcionaria com psicóticos (FREUD, 1913) e em que o mesmo Freud estava, ainda, escrevendo seu 'Caso Schreber' e sua teoria da psicose (SPIELREIN, 1911; FREUD, 1911).

Comentários

  1. Porque a psicologia russa fica com Pavlov e ignora a psicanálise? Ou sou eu q desconheço? Muito interessante seu artigo!

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  2. Obrigado. Não conheço o estado de coisas da psicologia russa. Sei que a URSS não deu espaço para a psicanálise. Mas isso lá pelos anos 20-30 do século passado. Desconheço a realidade posterior. Mas meu interesse é pelo que da cultura russa se vê também na psicanálise. E não pelo que elas têm de distância

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  3. Muito bom o texto q diria que universal e nao sobre a Rússia e aplicável a tudo e a todos

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