A arte das artes: mais uma contribuição ao debate gerado pelo surgimento de uma graduação universitária em psicanálise no Brasil

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Michel Foucault, em sua obra póstuma História da sexualidade 4: as confissões da carne (2018) se debruça sobre os primeiros séculos do cristianismo para nos mostrar de que modo se constituíram as formas de subjetivação que orbitam em torno do tema da carne. Para isso o autor, o tempo todo, demarca as continuidades e descontinuidades entre as práticas de subjetivação da antiguidade em relação ao cristianismo e do cristianismo em relação à modernidade.

Meu interesse, aqui, é sinalizar algumas continuidades, descontinuidades e perigos que se transmitem do que a tradição monástica cristã chamou de 'a arte das artes' à psicanálise, herdeira moderna que subverte tal tradição. De certo modo, portanto, este texto continua o debate sobre a transmissão da psicanálise, a formação do psicanalista e qual ética está em pauta nestes processos.

Mosteiro de Tatev, Armênia, séculos IX-XI

A arte das artes é um termo que se refere ao exame de consciência na vida monástica dos séculos III-IV e que antes servira para designar a filosofia. Difere dos exames de consciência praticados na antiguidade, com destaque para o cultivado na filosofia estoica, mas herda dela a vontade de modelar a alma. Para os filósofos pagãos, o exame de consciência era uma dentre inúmeras práticas com um mesmo fim muito claro: o domínio sobre si mesmo; tratava-se de um exercício de aprimoramento da consciência no domínio sobre os apetites e atos, era preciso refletir se um pensamento levou à consequência esperada ou não e corrigi-lo para que, na próxima vez, se necessário, aja-se de modo mais efetivo. Era uma tentativa de fazer o eu se identificar ao domínio racional sobre a existência.

No cristianismo monástico, o exame de consciência ganhou uma centralidade muito maior do que entre os estoicos. Se tornou o método privilegiado de modelar a alma para alcançar um objetivo que não era mais o domínio racional de si. Agora tratava-se de desenvolver, em si mesmo, a obediência, cujo objetivo era...a própria obediência. Toda a vida monástica era pautada por esta direção: a obediência. Daí o regramento de cada atividade de modo a instaurar a disciplina em toda prática realizada. A vida monástica, a modelagem de si através da obediência corporal e da alma através de diversos exercícios, se torna, então, uma arte da existência cristã (o cultivo de uma alma pura, virgem de pecados); para aqueles cristãos, a arte das artes.

Cena do filme O nome da rosa (Jean-Jacques ANNAUD, 1986), versão cinematográfica do livro homônimo de Umberto Eco (1980), um romance sobre a vida monástica medieval

A obediência absoluta significa: deixar-se conduzir. A alma pura e santa é aquela que se deixa dirigir pelo outro, na medida em que não tem como saber distinguir pensamentos cuja origem é divina e pensamentos infiltrados por Satanás disfarçados de bons, mas que levarão o indivíduo a pecar: por exemplo, pensamentos de se lançar à extrema caridade podem mascarar um orgulho secreto de ser o mais bondoso entre os monges e, portanto, o que pareceria bom é na verdade a intrusão do mal na alma daquele sujeito.

É por isso que o monge deveria revelar todos os seus pensamentos, não importa quais fossem, sem titubear, ao seu diretor de consciência, para que ele examine o que é bom e o que é mau. Porém, o próprio ato de se entregar, de não manter nada em segredo, de tudo dizer para este outro já revela a dedicação à obediência e - portanto - o caminho correto para a salvação, já que demonstra humildade e pureza.

A psicanálise herdou parcialmente esta prática. O psicanalista explica a seu paciente, de saída, que o tratamento funciona assim: o sujeito precisa falar livremente tudo o que lhe vem à mente, sem censura alguma, ao analista, durante a sessão. Ambos se debruçariam sobre o que foi dito, examinariam o material e a modelagem do sujeito se daria neste processo. É verdade. Mas a psicanálise não é um modo de subjetivação à feição dos antigos nem dos cristãos medievais.

Consultório de Sigmund Freud em Viena

A introdução do conceito de inconsciente e da racionalidade que nele opera, e, deste modo, o reconhecimento de que a subjetividade é uma experiência de divisão, de conflito entre duas racionalidades (a do Inconsciente e a do Pré-Consciente/Consciente), e não de domínio da razão sobre o que lhe escapa, já marca uma diferença fundamental entre a psicanálise e o exame de consciência antigo. Além disso, os estoicos visavam um fim para esse processo (o domínio da razão), enquanto a psicanálise, por tomar a divisão como constituinte do sujeito, não trabalha com a ideia de um término se o significarmos como uma conquista, um domínio estável. 

No que diz respeito às relações entre psicanálise e exame de consciência cristão é preciso dizer que ambos reconhecem o sujeito como dividido. Porém, enquanto na experiência cristã, Satanás deve ser combatido, na psicanálise o demoníaco, o que é inconsciente, deve ser reconhecido como parte constitutiva do sujeito. É verdade também que em ambos processos trabalha-se contra um eu narcísico que numa lógica é nomeado de pecador e na outra é nomeado de resistente. Mas no cristianismo trata-se de o eu deixar de ser narcísico para se tornar mortificado, esvaziado, absolutamente obediente ao outro, enquanto na psicanálise - e por isso ela é subversiva - o eu se constitui como força justamente na aderência ao outro e, assim, se ele é um percalço no acesso ao inconsciente, o outro também é. A experiência psicanalítica tem outra direção ética: para ela, a obediência é a própria marca da submissão psicopatológica ao desejo do Outro. A direção do tratamento psicanalítico mobiliza o sujeito a decidir, escolher, de modo um pouco menos automático, o que quer e o que não quer do Outro, seja do inconsciente, seja das instâncias e figuras de poder que (des)norteiam a vida, reconhecendo, no entanto, que a própria subjetividade é derivada do atravessamento de si pelo Outro.

Confissão (John OPIE, final do século XVIII)

Quanto à própria psicanálise enquanto instituição, diferente do Outro monástico-cristão (seja Ele Deus e/ou o Diabo) ela é atravessada, fundamentalmente, por este Outro que eu chamaria de vontade libertária, de crítica das tradições, de crítica do poder, de insurreição desalienadora, de Modernidade como projeto e prática. O psicanalista não julga o paciente, não moraliza a experiência subjetiva nem a racionaliza - ele suspende os valores 'moral' e 'razão' para que o desejo inconsciente possa desfilar na sessão e o sujeito possa incluí-lo como parte de si, e não defender-se contra ele.

Por isso não se pode falar em psicanálise cristã (nem como prática, nem como formação). Por isso também não se pode falar, se estamos no campo psicanalítico, em domínio da razão e de sujeição à sua suposta detentora, a universidade - no máximo, pode-se, na universidade, conhecer a psicanálise como campo teórico e fato histórico, mas não se experimenta ela como arte da existência, como formação de analista. Nem a Religião nem a Universidade são as casas da psicanálise. A psicanálise se transmite nos lugares em que a divisão é positivada e vivida como condição irredutível da experiência e não como algo a ser superado. Deste modo, a psicanálise se aproxima bem mais, por exemplo, da arte, como, aliás, Freud declaradamente defende em seu primeiro da série de artigos sobre a técnica, "O manejo da interpretação dos sonhos" (FREUD, 1911), porém, eu diria, da arte moderna: uma experiência incerta, cuja técnica se constrói sempre numa ocasião singular, que impõe ao sujeito um desconforto, uma divisão entre o que o agrada e o que não, entre o que domina e o que não, entre o feio e o belo, entre o tradicional e o novo, entre a regra e a desobediência (me refiro aqui ao paciente e ao analista, ao artista e ao fruidor da obra)...mas nunca como juízo moral, nunca como caminho da salvação, nunca como vitória da razão. Tanto a psicanálise quanto a arte moderna (ao menos desde o Barroco) é uma experiência de abertura (ECO, 1968). Perdura o conflito - e o fruidor da arte moderna como o psicanalisante passam a habitá-lo como sendo o lugar onde sua existência ganha algum sentido.

As moças de Avignon (Pablo PICASSO, 1907), talvez a pintura mais representativa do lugar subversivo da arte moderna

Último comentário: vê-se bem porque parece haver, no Brasil contemporâneo, uma convergência de interesses entre um cristianismo fundamentalista e o neofascismo em torno da psicanálise. Acredito que ambos veem nela uma figura de prestígio que, com algumas adequações (que, na verdade, a fariam deixar de ser psicanálise), a nodariam ao exame de consciência monástico; em outras palavras, ela funcionaria muito bem como instrumento de poder que serve para forçar, ensinar e subjetivar a obediência. E, para nossa tristeza, sabemos que isso já foi feito na história da psicanálise, em algumas instituições psicanalíticas que se tornaram coercitivas e geradoras de obedientes normalizados - talvez venha daí a tentação...

NÃO À GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE! NÃO À PSICANÁLISE CRISTÃ!

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