O Estranho Amor pela Guerra - Solidariedade ao povo ucraniano
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Minha ideia era escrever sobre o Carnaval, porém não só o Carnaval está cancelado como a invasão russa à Ucrânia se tornou um tema central, incontornável.
POR PRECAUÇÃO É PRECISO LEMBRAR QUE EM TEMPOS DE GUERRA, A PRIMEIRA VÍTIMA É A VERDADE (supostamente esta é uma máxima de Samuel Johnson), de modo que as informações a respeito da Guerra na Ucrânia que publico aqui correm o risco de serem desmentidas num segundo momento.
Como de costume, me apoio em alguma obra de arte como ponto de partida de meus textos; hoje parto de Doutor Fantástico (1964), uma obra-prima cinematográfica, do genial cineasta estadunidense Stanley Kubrick para pensar o que estamos passando na atualidade.
Cartaz de Doutor Fantástico (Stanley KUBRICK, 1964) |
O filme data de 1964, o que quer dizer que foi realizado logo em seguida ao extremo calor da famosa Crise dos mísseis entre Cuba, EUA e URSS que quase levou o mundo a testemunhar uma guerra nuclear entre Estados Unidos e União Soviética que teria consequências em todo o planeta. Esta comédia trata, com um humor nervoso, angustiado, exatamente do perigo de fim do mundo decorrente de uma guerra nuclear entre as duas superpotências do período da Guerra Fria. O filme é encenado como o riso nervoso que vem depois de uma situação traumática. A Crise dos mísseis foi essa situação, pois ali tínhamos o momento em que o risco de uma Terceira Guerra Mundial se tornou mais real...ao menos até a guerra que se sucede agora, a agressão de Rússia e Belarus contra a Ucrânia.
Desde que os EUA lançaram a bomba atômica em 1945, qualquer guerra que envolva alguma potência nuclear nos põe na situação de medo de catástrofes atômicas mundiais que, segundo o sociólogo Ulrich Beck, transformou indelevelmente as sociedades desenvolvidas a partir do acontecimento Hiroshima; vivemos, desde então, numa sociedade de risco (BECK, 1986). Porém, para muitos pareceu que o fim da União Soviética, em 1991, e, por consequência, o fim da Guerra Fria e da Cortina de Ferro, levariam o risco da Guerra Nuclear para longe. A situação atual - a invasão da Ucrânia por parte da Rússia - mostra que uma vez que existe a bomba atômica, o risco sempre está presente - e mais: que os passos de qualquer potência nuclear (e hoje elas são várias: EUA, Rússia, Coréia do Norte, China, Índia, Paquistão, Israel, França e Reino Unido) precisam ser muito bem pensados quando alguma outra potência nuclear se envolve numa guerra. A declaração de que não vai entrar na guerra direta com a Rússia, por parte do presidente dos EUA, Joe Biden, alivia parcialmente o medo da bomba, mas não inteiramente.
A bomba de Hiroshima |
Doutor Fantástico tenta mostrar o absurdo paranóide que agitava os nervos de estadunidenses e soviéticos, anticomunismo e anticapitalismo levados ao extremo do delírio: o absoluto medo de ser aniquilado poderia levar, ao contrário do que possa parecer razoável, à defesa através da agressão ao dito inimigo, no final das contas. Dinâmica imaginária, dualista, muito bem descrita, por Jacques Lacan, em seu texto "A agressividade em psicanálise" (LACAN, 1948). Hoje a Rússia não é mais a União Soviética, é um país capitalista e imperialista, marcado pelo crescimento do nacionalismo nos últimos tempos (de Yéltsin e Putin) e os Estados Unidos, desde os tempos de George W. Bush, além de manter sua tradição capitalista e imperialista, têm aumentado o tom do discurso nacionalista e belicista. Portanto, a rivalidade deixa de aparecer como uma suposta luta entre duas visões de mundo diferentes, duas ideologias concorrentes para pôr a nu o que é a guerra, fria ou não: no seu âmago, é a busca de dominação e gozo do humano sobre o humano, a justificativa teórica não é o seu fundamento (id, 1959-60). Freud buscou dizer exatamente isso, através de seu argumento na carta aberta a Einstein, "Porque a guerra?", sobre a inevitabilidade da guerra, posto que precisamos descarregar a pulsão de morte (FREUD & EINSTEIN, 1933).
É mais ou menos, também, o que decorre da elevação nietzscheana da vontade de poder a referência para se pensar o sentido da existência humana (NIETZSCHE, 1881). É também o que se depreende da operação foucaultiana de inverter a máxima de Carl von Clausewitz "A guerra é a continuidade da política por outros meios" (1832) para "A política é a continuidade da guerra por outros meios" (FOUCAULT, 1975-76).
Freud maneja os conceitos de pulsão de vida e, principalmente, de pulsão de morte na carta a Einstein para nos lembrar de um eterno perigo da violência do humano contra o humano - Freud é, neste sentido, um herdeiro de Thomas Hobbes, para quem 'o homem é o lobo do homem' (HOBBES, 1651). O já idoso psicanalista argumenta que todo indivíduo (e grupo) desenvolve estratégias de lida com a pulsão de morte para continuar a viver - e, assim, fazer as pulsões de vida anularem o trabalho de autodestruição próprio daquelas pulsões sobre o corpo e a autoimagem de cada um de nós. Dentre as operações defensivas do sujeito contra suas próprias pulsões podemos destacar a externalização da violência, transformando parte da pulsão de morte em pulsão de destruição. Destruir o outro é sempre um modo de continuar a existir, tem como base um desamparo fundamental, uma angústia real (FREUD, 1926 [1925]); mas não só existir está em cena na guerra nem, em geral, nos atos violentos. Neles se destrói o outro para também se amar narcisicamente, falicamente - há um gozo, um júbilo, em destruir o outro humano... as justificativas vêm depois, quando vêm.
As justificativas, em Doutor Fantástico, evidenciam a paranóia da guerra - um general psicótico acredita veementemente que os russos estão, em segredo, contaminando a água dos Estados Unidos com flúor, o que estaria levando a ele próprio (e talvez a outros compatriotas) a perder a ereção; a perda da potência fálica é materializada no pênis impotente do general - na disputa imaginária, ela é significada ao mesmo tempo como ataque do outro, bem como exibição erótica da potência do inimigo. O delírio paranóico se manifesta como crença absoluta, o que, numa guerra, pode ser utilizado como motivo suficiente para matar o outro humano, mas nrm sempre é a partir de certezas que se age e faz guerra. Há sempre também, junto do delírio, o cinismo da guerra. Seja orientada na paranóia, no cinismo, na angústia real ou em outra coisa, a violência ao outro humano parece ser uma força difícil de barrar, só é possível orientá-la para certas direções e, talvez, quem sabe, encontrar um discurso que venha significá-la ou mesmo justificá-la. Suspeito que as justificativas da invasão russa têm um quê de cada componente listado: angústia real, cinismo e paranóia.
Cena de Doutor Fantástico (Stanley KUBRICK, 1964), na qual se vê o general psicótico interpretado pelo excelente Sterling Hayden |
Há, de fato, na própria existência da OTAN, no próprio movimento da OTAN até às fronteiras com a Rússia, no namoro entre Ucrânia e OTAN, uma ameaça militar nada velada ao maior país do mundo em extensão. A OTAN foi criada para barrar a União Soviética, país que não existe mais há 31 anos, e sua principal herdeira, a Rússia, não é mais uma ameaça comunista, mas sim imperialista. Porque a OTAN permanece existindo, então? Este pacto militar obsoleto em termos ideológicos simboliza uma ameaça de violência à Rússia, não há dúvidas quanto a isso. Hoje, a existência da OTAN serve mais à disputa de influência e à disputa econômica do que à disputa ideológica. A Rússia é, hoje, o outro dos EUA, sem disfarces ideológicos, de modo que as coisas poderiam ser ditas assim: 'Quem vai dominar a Europa? Se não for eu, será o outro! Melhor que seja eu'.
Além disso, há, na Ucrânia, desde as manifestações anti-Rússia de 2014, um movimento crescente de extrema-direita que se manifesta de modo paramilitar nas províncias ao leste, em conflito bélico com os separatistas de origem russa. O próprio presidente da Ucrânia emergiu das manifestações de 2014 como o político não-político, de um partido inventado, 'contra tudo isso que está aí', 'contra a corrupção da classe política' (conhecemos este tipo, não é?); Wolodimir Zelensky é um outsider. Mas não é nazista, é judeu - e, portanto as acusações de Vladimir Putin de que o presidente ucraniano apoiaria nazistas são dignas de minha incredulidade. E, no entanto, não vejo em Zelensky um herói; tudo indica que é despreparado e desastrado ao lidar com os paramilitares de extrema-direita do Donbass, estes sim, simpatizantes do neonazismo, bem como são também alguns parlamentares. Talvez seja refém deles. De qualquer modo é nacionalista tanto quanto eles e o nacionalismo ali se exprime fundamentalmente como ser anti-Rússia ou anti-russos. Já Putin construiu sua imagem e sua política se colando a um perfil imperialista nacionalista e autoritário, aos moldes dos csares (e assim vemos que nosso presidente tem características comuns tanto com Zelensky quanto com Putin); o presidente russo justifica sua violência como combate ao nazismo mas seu ataque não foi somente aos paramilitares do leste... parece que aí há um quê de cinismo ou talvez, quem sabe?, de paranóia. Não importa: há a agressão, há a violência orientada contra o outro e, como modo de afirmação de sua potência.
Cena próxima do final de Doutor Fantástico (Stanley KUBRICK, 1964), na qual o piloto cowboy monta a bomba |
Não sou ingênuo, há também motivos econômicos para a invasão... mas talvez seja ainda mais ingênuo acreditar que os motivos econômicos bastem para compreendermos a violência do humano sobre o humano. Há uma economia não computada pelos analistas estritamente econômicos: a economia do gozo de destruição do outro, da violência, da humilhação que atende à afirmação narcísico-fálica e, ao mesmo tempo, revela uma satisfação obscena, macabra, como se percebe no júbilo do piloto cowboy numa cena ao final de Doutor Fantástico, montado na bomba atômica que cai sobre território soviético, dando gritos de alegria ao simular a derradeira cavalgada do vaqueiro: imagem sobredeterminada de gozo suicida (montado na bomba), gozo de retorno às origens, a um estado anterior das coisas (montado no cavalo de seu Texas), e gozo sexual (montado num humano ou num enorme falo). Não subestimemos a Vontade de Gozo humana (LACAN, 1963). Lamento a tradução do nome do filme para Doutor Fantástico, seu nome original é bem mais revelador de meus argumentos : Doctor Strangelove or How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb, ou seja "Doutor Estranhoamor ou Como Eu Aprendi a Parar de me Preocupar e Amar a Bomba". Em "Porque a guerra?", Freud, mesmo reconhecendo nosso pendor à violência, aposta - tragicamente, talvez, um pouco desiludido, talvez - ainda assim, nos esforços do amor sublimado entre os humanos, da simbolização como recurso, da substituição dos atos por discurso, como direção - e esta é a direção de qualquer clínica psicanalítica que se preze, sem sonhos fálicos de solução final, seja ela a eterna concórdia iluminista, soviética ou aquela proposta por Hitler, de extermínio dos inimigos e dominação ariana do globo. Em Freud, a vida, a existência, se experimenta na sustentação do conflito entre pulsões de vida e as de morte; a prevalência radical das primeiras levaria a uma imutabilidade mortífera, a prevalência das pulsões de morte levaria à auto e heterodestruição. Só a sustentação do conflito nos protege parcialmente da dominação absoluta ou da aniquilação.
Termino hoje esclarecendo, portanto, que prefiro me filiar à série Hobbes-Nietzsche-Freud-Lacan-Kubrick-Foucault à série de explicações absolutamente racionalistas da guerra que, no fringir dos ovos, nada mais é que a materialização em discurso do cinismo que justifica seja uma suposta bondade gerencial, seja a maldade, exatamente aquela que encontramos na argumentação do personagem Doutor Fantástico, que dá nome ao filme, um nazista enrustido, cujo braço histérico funciona como retorno do recalcado: por trás do discurso racionalista e cínico que trata vidas e mortes humanas como números, coisas, abstrações, se levanta um braço fazendo uma saudação nazista; por trás da frieza boa, neutra ou má, o gozo destruidor e destrutivo (o mesmo braço tenta enforcar o personagem).
Cena de Doutor Fantástico (Stanley KUBRICK, 1964): o engraçadíssimo Peter Sellers interpreta Doutor Fantástico lutando contra o braço que insiste em fazer a saudação nazista. |
Perfeito.
ResponderExcluirMuito bom.
ResponderExcluirObrigado
ResponderExcluirExcelente análise
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