Dignidade aos matáveis - luto por Kabagambe
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O assassinato de um imigrante congolês no Rio de Janeiro, Moïse Kabagambe, aconteceu nesta semana. Ele foi surrado num quiosque na Barra da Tijuca porque cobrava pagamento atrasado por seus serviços. Surrado, espancado por pessoas portando tacos de beisebol e pedaços de pau, Kabagambe materializou o que ele, imigrante africano e pobre, é para seus agressores: um monte de carne e mais nada. Diante de tamanho horror, convoco o grande fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado para auxiliar-me a conceder a este homem um digno trabalho de luto.
Imigrantes involuntários ou refugiados em Êxodos (Sebastião SALGADO, 1999) |
A fotografia acima, de Sebastião Salgado, é apenas uma dentre muitas que compõem seu livro Êxodos (1999), o qual documenta cenas da existência de diversos povos no mundo que, na época, eram obrigados a se exilar de seu lar, de suas terras, de seu país, por motivos atrozes como fome, miséria, humilhação, perseguição política, genocídio, guerras, terremotos etc.
Daquela época para cá o número de refugiados no mundo só aumentou. E muito! Sabemos disso ao acompanhar o destino que milhares de pessoas tomaram ao fugir da Guerra Civil na Síria ou das milícias violentas da América Central, por exemplo. O muro construído pelo peesidente estadunidense Donald Trump, na fronteira com o México, o outro construído por Israel em relação a territórios palestinos e os campos de refugiados/concentração espalhados pela Europa não nos deixam esquecer como se tem lidado com o outro indesejado que vem bater à nossa porta pedindo socorro.
Outra fotografia componente de Êxodos (Sebastião SALGADO, 1999) |
A filósofa Hannah Arendt, em seu seminal As origens do totalitarismo (1951), buscou demonstrar como um fenômeno ao mesmo tempo incitador e condicionante da emergência do totalitarismo foi justamente a situação de milhares de pessoas na Europa da primeira metade do século XX: refugiados, apátridas, nômades e minorias étnicas não tinham nenhum direito político nos Estados Nação daqueles tempos. Não eram cidadãos, não havia quem os representasse, protegesse ou regulasse. Eram apenas uma massa de carne perambulante que ora era utilizada - porque não eram regulados, não tinham direitos nem deveres - como força de trabalho barata, ora era acusada de tomar o emprego dos cidadãos de bem. Judeus, ciganos, albaneses, antes ainda os armênios, tiveram o destino que todos nós infelizmente já sabemos: o extermínio em massa, o genocídio. Nada os protegia, não tinham nenhuma dignidade, nenhum lugar, nenhuma representação jurídica ou política, eram destituídos de seu valor simbólico e, deste modo, desumanizados, tornados coisa.
O fascismo se alimentou do ódio e da culpabilização desses povos, os bodes expiatórios da ocasião, que podiam ser assassinados como se mata um rato exatamente porque foram desumanizados e tornados carne matável por um arsenal simbólico antes de terem sido por armas reais. Sabemos também que muitos dentre esses povos, que não foram mortos, carrega(ra)m a morte em suas almas. A melancolização daqueles que tiveram de passar pelo luto insuportável e talvez impossível da perda de quase todos que amava e conhecia, que se foram de modo humilhante e repugnante, foi registrada como uma psicopatologia frequente. Essa melancolização precisa ser compreendida, sobretudo, como o efeito da identificação ao agressor (FERENCZI, 1933), interiorização do olhar e do discurso do nazista, do fascista, do stalinista, que olha para o seu alvo, aquele eu, como desprovido de humanidade, de legitimidade, como uma mostruosidade ao mesmo tempo odiosa, temível e desprezível. 'Como me amar se todos olham para mim como alguém pior, um resto infame?'
Sandor Ferenczi |
Não é por isso que passam os negros no Brasil e nos Estados Unidos desde que se equalizou, na mente do escravizador, a imagem do negro com a do escravo? Imaginemos, então, um negro imigrante de um país pobre da África, com um trabalho precário num quiosque da Barra da Tijuca, que buscava receber o 'valor justo' por seu trabalho. Estamos falando de alguém cujos discursos e olhares do Outro já o destituíram de sua dignidade, já lhe despiram das insígnias de 'humano'. Estamos falando de alguém à margem da proteção jurídico-político-simbólica do Estado e da nação brasileiros. Alguém que 'não importa'.
O psicanalista Joel Birman tem proposto pensarmos a situação de precariedade absoluta que essas pessoas passam diante dos outros humanos e do campo simbólico que os regula a partir do termo desalento (2012). O termo foi cunhado a partir de outro termo já consagrado em psicanálise, o de desamparo fundamental do humano, mas para indicar uma condição diferente. O desamparo fundamental, como ensina Freud (1930), é uma condição basal de todo ser humano; todos nós, ao nascermos, não sobreviveríamos sem os cuidados, a proteção, o amparo de outro(s) humano(s). O bebê deixado sozinho morre. A criança é desamparada diante do mundo, que não domina, não entende e também diante de suas próprias pulsões que não sabe governar, nem educar. As pulsões a pressionam a fazer o que o mundo externo - em especial os pais que a amparam e amam - condena, de modo que, em nome do governo das pulsões, da compreensão do mundo e do medo da perda do amor e do amparo, ela se submete ao domínio do Outro, em primeiro lugar reconhecido nos pais, e que terá destinos diversos na cultura. Um destino possível é a sujeição ao líder fascista, aliás.
Mas se ela se submete ao Outro por medo de perda do amor é porque acredita, aposta, tem a esperança de que isso pode ser contornado, revertido. Ela tem fé de que pode agir na realidade de modo a fazer com que o Outro a ame. Ela acredita em si como objeto de amor possível. Já o desalento é um termo utilizado por Birman quando a situação é outra: quando não há mais esperança, quando não se crê mais em si mesmo como alguém digno de ser amado, quando se introjetou o olhar e o discurso de um Outro que destitui o sujeito de sua dignidade e valor.
A travessia do Mar Vermelho (Nicolas POUSSIN, 1634), um bom exemplo do tipo de iconografia que parece ter inspirado Salgado em Êxodos |
Sebastião Salgado, através de Êxodos faz uma verdadeira intervenção clínica e crítica: suas fotografias dão um caráter épico ou clássico à cena, lembrando, através da dramaticidade do claro-escuro, do 'desenho' das figuras, do enquadramento, do ângulo e do tema, diversas representações da História da Arte de cenas bíblicas, míticas ou históricas. Através desta estilização, seu efeito é impressionante: pessoas humilhadas, com vidas destruídas, desalentadas, pura carne que se morrer não comove ninguém, são transmutadas pela força da fotografia - se tornam heróis, personagens épicos, dignos, honrados, protagonistas de um Êxodo (e aqui a referência bíblica é evidente). Salgado injeta esperança, amor e dignidade nestes seres que se tornam novamente humanos através de suas lentes, se tornam capazes de comover...e, por isso, se tornam capazes de serem amados, se deslocando do estado de desalento para o de desamparo a partir do olhar do Outro, propiciado pela fotografia. O que já é muito.
A jangada do Medusa (Théodore GÉRICAULT, 1818), outro exemplo da iconografia épica que parece ter inspirado a obra de Salgado |
Que choremos pela morte de Moïse Kabagambe. [Parabéns ao PUD (Psicanalistas Unidos pela Democracia) por sua manifestação junto ao Portal Favelas!]. Que nosso choro lhe restitua a dignidade, como o fez Salgado com o choro de sua câmera diante de outros imigrantes humilhados. Mas também é preciso que construamos recursos simbólicos para restituir a dignidade dos matáveis ainda vivos, o que talvez possa frear o gosto fascista de sangue, muito atual no Brasil, infelizmente.
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