Dedicado aos petropolitanos: A Catedral de Petrópolis

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Minha vida inteira frequentei Petrópolis, da infância até hoje, portanto, o texto que segue é, evidentemente, carregado de afetos vários. Eu não poderia não escrever.

Escolhi um símbolo da cidade como ponto central desta homenagem crítica à cidade que passa por uma tragédia infelizmente anunciada, uma repetição de outras tragédias de verão já ocorridas por lá. Segundo os dados que consultei na imprensa, ao escrever este texto, no atual momento [sendo atualizado*] contam-se 233 mortos e 4 desaparecidos devido a desmoronamentos e enchentes ocasionados pelas fortes chuvas de verão (mas seria somente um desastre natural?). O Centro da cidade foi, dessa vez, muito machucado, mas permanece lá, resistente, a Catedral de Petrópolis, o objeto-pretexto de meu pequeno ensaio.

Catedral São Pedro de Alcântara, Petrópolis (Júlio Frederico KOELER, 1843; Francisco CAMINHOÁ, 1884)

A Catedral São Pedro de Alcântara, dedicada ao padroeiro da Monarquia Brasileira, é um interessante exemplo da arquitetura neogótica que vicejou do fim do século XVIII até o começo do século XX. O projeto é do Major Júlio Frederico Koeler, um militar luterano alemão que emigrou para o Brasil em 1828, com 24 anos de idade. O Major Koeler pode ser considerado não só um arquiteto, mas também um urbanista, tendo ele planejado a cidade de Petrópolis junto de Paulo Barbosa da Silva, o mordomo imperial. Koeler veio a falecer em Petrópolis, aparentemente atingido por uma 'bala perdida' num clube de tiro. Considero importante pensarmos esta cidade como nascida de um trabalho conjunto de um militar alemão com o mordomo imperial. A construção da Catedral só começou em 1884; Koeler já tinha morrido e quem tomou a frente do projeto foi o arquiteto baiano Francisco Caminhoá, orientado ainda pelo fantasma neogótico do idealizador.

Na Catedral estão sepultados os corpos de Dão Pedro II, de Dona Teresa Cristina, da princesa Isabel e do Conde d'Eu; tal Catedral e a cidade são um importante símbolo da monarquia dos Orleans e Bragança. E a escolha de fazer a catedral no estilo neogótico é significativa para entendermos um pouco sobre o espírito monárquico que paira, até hoje, sobre Petrópolis e que se relaciona, em parte, a meu ver, com as tragédias sazonais de verão. 

O neogótico é um veio do que poderíamos chamar de Romantismo, na arquitetura. O Romantismo pode ser considerado como uma certa posição estético-filosófica que foi gestada na Alemanha oitocentista como crítica ao culto francófilo à razão, mas que se alastrou por toda a Europa e pelas Américas. Todo romântico (seja ele artista, cientista, filósofo, ou simplesmente uma subjetividade modelada nesta estética) julga a redução dos valores éticos, estéticos e políticos ao domínio da fria razão como uma violência, uma agressão ao espírito humano, o qual, a seu ver, comporta ainda outras experiências que dão sentido à existência e que nada devem ao uso da razão para isso: as artes, a tradição, a religião, o misticismo, os sentimentos, os processos vitais etc.

A Liberdade guiando o povo (Eugène DELACROIX, 1830)

Houve, segundo o epistemólogo e historiador francês Georges Gusdorf (1982), diversos romantismos, que, segundo ele, poderiam ser politicamente divididos entre romantismos revolucionários e romantismos conservadores. Um bom exemplo do romantismo revolucionário está na pintura de Eugène Delacroix, em particular em seu A Liberdade guiando o povo (1830), onde a luta do povo é menos representada como uma vitória da razão e mais como um ato subversivo e heróico, caótico e sentimental, um momento agonístico e político, no qual o excesso afetivo pulula. Já o romantismo conservador pode ser reconhecido em tentativas de restabelecer o que a Revolução e o Iluminismo destronaram por considerarem irracionais e prejudiciais aos tempos modernos. O neogótico é um bom exemplo deste tipo de romantismo.

O neogótico visa restabelecer como valor os traços da arquitetura gótica que, por ter sido predominante na Europa entre os séculos XIII e XVI, perdura como um importante símbolo da Idade Média e, de um modo geral, do Antigo Regime. Porém, não se pode chamar estas obras arquitetônicas, a maior parte delas do século XIX, que repetem temas góticos, simplesmente de um retorno ao Gótico, posto que estas mesmas obras sinalizam que não são mais aquela arquitetura de séculos atrás, a partir, por exemplo, dos materiais utilizados em sua edificação: são muito frequentes tanto o concreto quanto o ferro e o aço produzidos e modelados pela moderna indústria capitalista e que, portanto, apontam para um rumo histórico que se distancia demais do artesanato medieval pré-capitalista, um dos fundamentos da arquitetura gótica. Outro exemplo: a arquitetura neogótica idealiza o estilo gótico exagerando ou mesmo inventando características que não existiram na Idade Média histórica, mas sim num Medievo dos Sonhos, como se vê nos castelos e palácios quase fantásticos erigidos na época - o Palácio de Westminster, em Londres (Charles BARRY, 1834), e o Castelo de Neuschwanstein, na Alemanha (projetado pelo rei louco, Luís II da Baviera, em 1869), expressam exageros que sinalizam mais o sonho secreto do burguês de opulência e imposição do que a certeza que acompanha a relação dos nobres com seu status e que se expressa nos reais castelos góticos medievais, bem mais discretos. Utilizando um termo freudiano, a arquitetura neogótica é uma formação de compromisso entre duas tendências: como talvez dissesse Walter Benjamin (1936), há ali uma vontade de restabelecer, na era industrial, algo da aura perdida pela mecanização da produção de objetos (e mesmo de edifícios) através da emulação de formas que remetem aos tempos em que Deus reinava acima de tudo e o Monarca acima de todos. Mas o próprio gesto de restabelecimento de uma ordem perdida é a evidência de que tal arquitetura também é atravessada por uma outra tendência, na qual a morte de Deus (NIETZSCHE, 1882) orienta sua lógica - o desenvolvimentismo moderno, industrial-econômico, burguês-capitalista, materialização do desencantamento do mundo (WEBER, 1905). Ao menos desde a minha infância, nos anos 80, a tendência recalcada parecia ser a primeira, enquanto a outra habitava a vida consciente dos petropolitanos.

Palácio de Westminster, Londres (Charles BARRY, 1834)

A Catedral de Petrópolis é um excelente exemplo desta formação de compromisso: a vontade de manter ou restabelecer a aura do Monarca e do Deus dos católicos, porém projetada por um militar alemão protestante, urbanista, um representante do espírito moderno do capitalismo a que se refere Max Weber. Estas duas tendências orientam a vida política e o imaginário petropolitanos até hoje: ou o conservadorismo saudosista do Monarca e do Deus mortos, antes tímidos, ou o ímpeto desenvolvimentista-industrial capitalista acéfalo, cada vez mais patente. Deus & Dinheiro. Qualquer outra forma de pensar, imaginar e fazer política em Petrópolis parece ter sido foracluída, para adotar um termo preciso, introduzido por Lacan no vocabulário psicanalítico (LACAN, 1955-56). 

Esta formação de compromisso parecia ser, por muito tempo, uma característica petropolitana e, talvez, só petropolitana aos meus ingênuos olhos de criança e adolescente. Mas, de uns tempos para cá, temos visto cada vez mais, no Brasil, ganhar espaço no debate público, posições assim: tentativas de juntar o conservadorismo ou até mesmo o reacionarismo, saudoso do monarca e de Deus, com o capitalismo do momento, no caso, o neoliberal. Vemos isto, antes de tudo, óbvio, na posição de algumas sombras do passado, como Dom Bertrand de Orleans e Bragança, mas também nos fundamentalismos católico e neopentecostal que se aproximam do capitalismo como valor sem abandonar seus cultos ao passado ou às origens; do mesmo modo, o neofascismo brasileiro também encontra seu meio de juntar as tendências à sua maneira. O que fica de fora é uma possibilidade de pensar e praticar o desenvolvimento que não seja nem capitalista nem que se submeta à ereção do Pai como solução (seja ele imaginado como Deus, o Monarca, o Líder ou o Pai de família).

Ponte do Brooklyn, Nova York (David B. STEINMAN, 1883), mais um exemplo da formação de compromisso entre capitalismo desenvolvimentista e saudosismo medievalista

Como Freud nos ensinou, a tentativa de formar compromissos é a lógica subjacente aos sintomas psiconeuróticos (1905). Um sintoma de Petrópolis é a tragédia que resultou nas mortes ocasionadas pelas chuvas torrenciais; sintoma aqui entendido como um mal-estar produzido pela formação de compromisso, mas do qual não queremos saber como se formou, nem queremos verdadeiramente abandoná-lo. Explico: quando eu era criança e já frequentava a cidade, via suas muitas montanhas aparentemente virgens da intervenção humana, salvo por pedras enormes onde estavam escritas, em tinta, frases, slogans, como "Só Jesus Salva" ou "Só Jesus expulsa o Diabo das pessoas". Hoje não há mais nada disso escrito nas pedras, hoje há casas nas pedras...algumas destas ruíram nesta semana, aliás. O que houve? Tratava-se, nos anos 80, da ascendência de um novo fundamentalismo religioso no estado do Rio de Janeiro, tentando reviver Deus - este projeto capilar deu certo ao organizar-se como neopentecostalismo, onde a adoração religiosa se engata numa teologia da prosperidade conforme ao neoliberalismo (COOPER, 2017). Hoje não é preciso escrever mais nas paredes, aquilo já está inscrito nos corações. E quanto à substituição de textos por casas? Isso se deve, ao mesmo tempo, à ganância de empreiteiras capitalistas que, em nome do desenvolvimento industrial-técnico e, claro!, do lucro, alimentaram o crescimento urbano em áreas de risco, construindo desde casas populares a condomínios de classe média, e à acelerada favelização das encostas, alimentada pela promessa de emprego, dinheiro, trabalho, perto de casa e, como se sabe, ocasionada pelo efeito mais nefando do capitalismo neoliberal: a brutal concentração de renda em poucos, e a consequente pauperização dos outros todos. A ocupação das montanhas foi realizada pelo capitalismo e a ocupação dos habitantes das montanhas foi realizada por certas religiões que ensinam que a assistência e a proteção do morador das áreas de risco devem ser feitas por Deus e pela comunidade religiosa. Está aí o sintoma: juntar capitalismo desenfreado com crença de que apenas a religião deve se ocupar de cuidar das vidas e mortes dos humanos nos põe no desamparo social. Houve uma exclusão do Estado e até mesmo uma exclusão da demanda pelo Estado. A fragilidade diante de chuvas que se tornaram assassinas têm um cúmplice: um modo de pensar e fazer política que retira de cena a importância do Estado Republicano e Democrático, que cuida dos cidadãos, restando apenas a orientação moral religiosa-tradicionalista e a competição capitalista selvagem.

Que isso sirva de lição para o Brasil como um todo, que tem, ultimamente, se 'petropolizado'.

Palácio de Cristal, Petrópolis (Encomendado pelo Conde d'Eu à SOCIETÉ ANONYME DE SAINT-SAUVEUR, 1884)

Psicanalistas sabem bem que o modo de desmontar formações de compromisso é revelá-las através do desrecalcamento da tendência inconsciente, abrindo a possibilidade de elaboração e deliberação ética consciente. Freud, no que diz respeito ao trabalho de desrecalcamento, de tornar consciente o inconsciente, algumas vezes, adotou a metáfora da arqueologia (p.e.: FREUD, 1937): trazer do subterrâneo à luz as partes conservadas e esquecidas de uma história. Não é que isso estava sendo feito nos jardins do Palácio de Cristal?! Havia uma expedição arqueológica ali trabalhando. As chuvas, o transbordamento do rio, as encostas despencadas, enlamearam todo o jardim cobrindo-o e, é óbvio, cobrindo também todo o sítio arqueológico. Uma coincidência com força de metáfora do que tem sido a violência reacionária diante dos esforços críticos de lembrar e elaborar a história do Brasil.

Que lembremos que Petrópolis foi erguida e orientada pelo Estado, personalizado na figura de Dão Pedro II; e que foi a gestão neoliberal do último quarto do século XX para cá que o retirou de cena. Que lutemos contra toda essa lama para que construamos de forma mais responsável da próxima vez!

Comentários

  1. Como a gente ama Petropolis, não ? Por isso estamos tão tristes e impactados por esta tragédia. Quantas vezez passamos pela avenida, pela rua Teresa, pelo Quitandinha. O fato é que a cada vez que eu subia, que já não é tão frequente , eu via mais um morro desmatado e tomado por moradias sem estrutura. Ns Quitandinha, no Alto da Serra, por todo entorno da cidade imperial. Em vez de obraz de estrutura para residencias populares, licença para construir em áreas de risco para angariar votos. A cidade toda cortada por rios, náo teve nenhum serviço de limpeza desses rios que se juntaram tornando desde a Ponte Fones até o Centro um rio largo e caudaloso. Quantas vidas, quantas perdas ! Até quando ?

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  2. Obrigado pelo comentário. Concordo com muito que você escreveu. Peço que, se possível, se identifique.
    Um abraço

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