A estética do jogo fascista
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Deste modo, há uma estética sempre presente no fascismo que poderíamos chamar de culto à morte, a qual se conjuga também com uma certa moral e com uma atitude política. Tratarei deste tema hoje.
Antes de tudo é preciso dizer que o culto à morte não é exclusivo ao fascismo, contudo o fascismo sempre cultua a morte, o que se vê na violência aos outros mas também na violência contra si próprio ou contra o próprio grupo. Paul Virilio, em 1976, cunhou a fórmula "o fascismo é suicidário", mas muito antes, em 1951, Hannah Arendt já pensava o totalitarismo como um movimento violento que, se fosse parado, se voltaria contra si mesmo. Acrescento apenas mais uma referência para sublinhar o mesmo ponto: Umberto Eco, em seu trabalho a respeito do Ur-fascismo (1997) - uma espécie de fascismo basal, eterno -, também acentua, dentre as características possíveis do fascismo, o culto à violência bem como outras atitudes que supõem alguma violência, real ou simbólica, como, por exemplo, machismo e misoginia e que se voltam também contra o próprio sujeito: por exemplo, uma mulher fascista agride a si mesma com seu machismo misógino.
Todo projeto fascista é, no fundo, o de destruir e matar os outros para preservar um grupo que, ele também, se destrói, ao encontrar a alteridade em si mesmo. O melhor exemplo está em Hitler que chegou ao poder em 1933 e já em 1934 mandou matar o líder das SA, Ernst Röhm, um fiel aliado nazista, por ser homossexual; e como se sabe, no fim de sua aventura macabra, em 1945, não só se matou como ordenou que a Alemanha se autodestruísse, argumentando que a guerra é a verdadeira prova de superioridade de uma raça e, se o Reich perdeu a guerra, era porque, então, era inferior às raças vitoriosas e, pela mesma razão que sustentou o genocídio de judeus - o darwinismo social -, entendia que os alemães deveriam, então, morrer.
O fascismo de hoje ainda é suicidário, como se vê na atitude negacionista diante do COVID-19 que, recentemente, matou até mesmo um dos ideólogos do neofascismo brasileiro, o astrólogo Olavo de Carvalho.
Na ficção, um ótimo exemplo a respeito deste assunto, é o álbum (PINK FLOYD, 1979) e também o filme (PARKER, 1982) The Wall, no qual ouvimos/vemos um sujeito construindo um muro mental contra tudo que (o) odeia e humilha, tornando-se isolado do que incomoda para, no clímax, transformar-se, através de uma exteriorização de toda a violência antes defensiva (e agora como ataque ressentido) num líder fascista, até que, ao final, ataca a si mesmo porque foi pego "mostrando sentimentos".
Capa de The Wall (PINK FLOYD, 1979) |
Mas, como Pedro Dória muito bem acentua em seu vídeo, o fascismo não se define unicamente pelos líderes, mas pela relação de identificação massiva entre um grupo e seu líder. Eu acrescentaria: entre o líder, o grupo e certos valores reacionários a serem defendidos com ódio e violência. O fascismo resiste à derrocada do líder, como o neonazismo comprova - e como a aparente simpatia ou tolerância ao nazismo de algumas figuras públicas brasileiras nos faz lembrar. Entre líder e grupo formam-se redes de apoio mútuo em que se cultua a violência a um outro externo, mas que, em certo momento, se volta contra o próprio grupo, não sem fazer aparecer uma explosão de afetos ressentidos como ódio, inveja e raiva (NIETZSCHE, 1887). Se há ressentimento, pode-se perguntar se a estética do fascismo, que diversas vezes registra o líder ou a massa em júbilo fálico triunfante, não é uma estética de quem não goza - e talvez por isso recorra tanto à violência, aliás, como um misto de revolta e nova tentativa de gozar.
Jacques Lacan talvez possa nos ajudar aqui. Em um rico escrito chamado "Kant com Sade" (LACAN, 1963), dentre outras ideias, busca demonstrar que a lógica da perversão sádica pode ser compreendida a partir de duas indicações importantes:
1) o perverso tenta transmutar a experiência do desejo em uma vontade de gozo. É verdade que todo desejo aponta, em última instância, para uma vontade de gozo, mas o que Lacan denota aqui é que o que está em jogo no sadismo é um recurso para não se sentir o desejo como falta, como divisão subjetiva, mas sim como uma pressão absoluta para se gozar, como uma força incontornável e mais: como um imperativo que exige o gozo imediatamente e eficazmente.
2) Mas o gozo exigido não é o do sujeito. É o gozo do Outro. O sujeito se submete absolutamente a um empreendimento de fazer o Outro gozar através dos maus-tratos aos outros. O perverso não é um narcisista, é apenas um instrumento do Outro e, ao mesmo tempo, um fanático pelo Outro - ele faz de tudo para crer na potência absoluta do Outro, para se impedir de ver que o Outro,tal como ele mesmo, também é limitado e inconsistente. Lacan aproxima, assim, a figura do perverso daquela do moralista muito mais do que a do doente mental. Todo este jogo funciona melhor, vale pontuar, na banalidade do mal (ARENDT, 1963), burocrática, no cumprimento de mandamentos, na execução de tarefas que vem do Outro como ordens - como vontade de gozo.
Deste modo, aproximo a estética do jogo fascista daquela do jogo perverso, mas também quero aproximá-la da dinâmica do suicídio que Freud apresenta em "Luto e melancolia" (FREUD, 1917), na medida em que, como sinalizei acima, o fascismo é sempre suicidário. Neste artigo, Freud nos diz que a autoagressão e, por consequência, o suicídio, devem ser pensados como uma agressão a um objeto que foi internalizado. Quem agride? Ao que parece, precisamos considerar a figura do Outro. Quem é agredido? O eu, identificado aos objetos humilhados e atacados. Diante da potência que quer ver no Outro, ele é apenas mais um a ser sacrificado em nome daquele. Tanto a referência à perversão quanto ao suicídio me fazem repetir: o fascista não é um narcisista, a unidade que ele sustenta é a do Outro, não a autoimagem.
Regresso de um proprietário (Jean-Baptiste DEBRET, 1834-39) |
De que Outro estamos falando, ao considerar o jogo fascista brasileiro? O líder? Talvez, mas creio que, mais que o líder, trata-se do que ele encarna: o racismo estrutural (ALMEIDA, 2019), escravocrata, o falocentrismo, um certo conjunto de ideias e modos de ordenar a realidade que tem horror à democracia radical e à justiça social, o fundamentalismo religioso e - no caso do neofascismo - o constructo neoliberal do "empresário de si" (FOUCAULT, 1978-79), que, muitas vezes, é sustentado às custas do amor próprio, levando à sensação de fracasso e à depressão. O fascismo brasileiro é uma submissão a estas estruturas em nome do gozo mortífero, violento, destrutivo sobre o outro, sobre si mesmo e sobre os discursos e atos que criticam e desvelam a inconsistência daquele Outro. Culto à morte, real e simbólica, ou seja, do que impede este Outro que se quer fazer soberano e infalível: a própria morte. Não há Outro mais terrível, que mais consistência aparenta, mais potente, mais gozoso do que a Morte.
Um elemento importante na estética fascista é fazer parecer que o Outro goza e que este gozo sempre se possa pressentir através do signo da morte. Que o gozo do Outro transpareça em cada ato violento fascista, em cada escárnio, em cada afirmação da potência dos dominantes é próprio desta estética. O gozo violento do Outro autoriza até mesmo que os fascistas experimentem ódio, raiva, desdém, desprezo - e não a indiferença de Eichmann ou o tédio de Sade -, mas não, no fundo, por benefício próprio, em nome do próprio gozo, mas sempre na condição de acreditarem estar fazendo o que o Outro exige, o que ele quer que seja experimentado.
Como desmontar este jogo? É sempre difícil, mas se nos fiarmos na clínica da perversão, um ponto importante é fazer aparecer o desejo no fascista, a falta, sua posição de sujeito dividido. Não como ato acusatório, mas como experiência humana, demasiado humana e, ao contrário de exigir explicações e retificações quanto às inconsistências de seus argumentos e de seu modo de vida, dar dignidade à existência nele daquilo que ele não quer que exista.
Como a filósofa estadunidense Judith Butler defende, em A força da não violência (2020), toda violência é uma auto-violência, isso vale tanto para o fascista como para quem quer sensibilizá-lo a respeito da sua condição, daí a importância de uma referência clínica que nos oriente eticamente a dar dignidade ao sujeito dividido, em apuros consigo mesmo, e não uma que nos faz cobrá-lo superegoicamente por uma retificação.
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