Qual a mensagem de Íris?

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Íris, mensageira dos deuses é uma escultura de Auguste Rodin, criada entre 1891 e 1894. A escolha deste nome para esta escultura é o ensejo para trazer para este blog algumas importantes discussões que atravessam o campo psicanalítico e mais um comentário, ao final, a respeito da absurda invencionice de uma graduação em psicanálise. 

Íris, mensageira dos deuses (Auguste RODIN, 1891-94)
Antes de tratar da própria escultura, vale lembrar ao leitor quem é Íris, a mensageira dos deuses: na mitologia grega, Íris é, ela própria, uma deusa, que se manifesta no, e ao mesmo tempo, é o arco-íris - uma ligação entre os céus e a terra. Íris, tal como Hermes, é uma deusa mensageira, é ela quem faz a comunicação dos deuses com os humanos; o fenômeno do arco-íris era, desse modo, significado na Grécia arcaica como uma mensagem dos deuses a ser decodificada ou interpretada (BRANDÃO, 1997).

Mas esta deusa jamais foi representada como uma mulher que abre as pernas de modo a mostrar sua vagina, como se vê na escultura em questão. Portanto é de interesse nos perguntarmos o que se produziu com essa conexão inusitada realizada pelo escultor francês, a de atribuir o nome Íris, mensageira dos deuses àquela escultura. É possível que as pernas abertas em arco aludam ao arco-íris, mas permanece a pergunta sobre qual seria a mensagem de Íris, se ela passou a ser associada por Rodin a uma vagina.

A escultura de Rodin parece também dialogar com um quadro pintado por Gustave Courbet, A origem do mundo, de 1866, que o escultor conheceu apesar da pintura pertencer a uma coleção particular já naquela época (aliás, continuou a pertencer a coleções particulares por bastante tempo - seu último proprietário não foi ninguém senão Jacques Lacan, que inclusive decorava seu consultório com ele). Mas se ambas as obras nos apresentam a vagina numa impactante visão frontal, também é possível perceber importantes diferenças que talvez indiquem qual é, afinal, o sentido de dar o nome Íris, mensageira dos deuses a tal estátua.

A origem do mundo (Gustave COURBET, 1866)

Enquanto o quadro de Courbet nos apresenta um corpo em descanso e relaxado, em pleno acordo com as típicas representações do nu feminino da iconografia vigente ao longo da história da arte ocidental, mesmo que seja sim uma obra provocativa por conta do ângulo  a partir do qual apresenta a figura, a escultura de Rodin, ao contrário, remete ao movimento agressivo e atlético de um corpo musculoso que exibe a vagina, impondo-a ao público. Não se pode dizer que a mulher representada por Courbet expõe sua vagina, mas sim que o pintor se posicionou em relação a ela a partir de um ângulo tal que é possível vê-la. A pintura fala do voyeurismo do artista e do público mais do que do exibicionismo da mulher. O artista escolheu ver aquela vagina frontalmente; sem dúvida algo escandaloso para a época e ainda para nossos dias, como sabia muito bem Courbet e como Freud comentou anos à frente: há algo de chocante em ver os órgãos genitais femininos, que remete à castração, não se quer 'vê-la' (a castração) - é o que se lê em "A cabeça da Medusa" (FREUD, 1922). 

O que quero dizer é que a obra de Courbet não revela uma mulher ativamente movida pela exibição da vagina como se vê claramente na de Rodin, e entendo que, com essa mudança, o escultor nos põe diante de algo além ou aquém da castração. A mensagem dos deuses teria a ver com isso? A exibição ativa da vagina? Talvez até agressiva, quem sabe? E que mensagem, então, seria essa? Aqui lanço mão da psicanálise em minha interpretação.

Medusa (Michelangelo CARAVAGGIO, 1596)

Ao final de sua obra, em Análise terminável e interminável (1937), por exemplo, Freud nos alerta para um ponto duro, difícil, na análise, a respeito da travessia das neuroses de homens e mulheres: seja através da angústia de castração ou da inveja do pênis, o que está em questão é a dificuldade de fantasiar ou experimentar um erotismo não reduzido ao falo, um erotismo que interligue passividade e atividade, abertura e descontrole, desgoverno e gozo. Trata-se de nossa dificuldade cultural em afirmar a feminilidade como valor, possibilidade ou destino. No texto freudiano, sinaliza-se a tomada da vagina como órgão não de vergonha nem de ausência de falo ou erotismo, mas pelo que ela é como zona erógena, que se apresenta como campo de gozo possível. 

O gesto da personagem esculpida, seus músculos, sua atitude, indicam o quanto de atividade pulsional às vezes se empreende para se construir a passividade erótica - a obra de Rodin, creio, nos apresenta uma mulher ativa na exibição jubilosa, na afirmação de sua diferença e na sua busca de gozo (seja através da experiência exibicionista, seja na penetração ou sabe-se lá no quê mais), uma verdadeira afronta àquilo que ainda hoje tenta dominar mulheres e homens através das coordenadas fálicas - o patriarcado machista - e, deste modo, corajosamente, nos convida a olhar de frente não para a castração, como no quadro de Courbet, mas para uma vagina que quer gozar - não para a falta de algo, mas para a presença de um erotismo.

O conceito de feminilidade desenvolvido por Freud pode ser relacionado ao que Lacan desenvolveu em suas fórmulas de sexuação. Aquilo que o psicanalista francês chamou de um gozo não-todo inscrito na ordem fálica seria o gozo feminino (LACAN, 1972-73). Ele remete à possibilidade de retirarmos as mulheres da absoluta submissão ao homem, e, indo além, de afirmarmos que o binarismo fálico-castrado não dá conta do erotismo nem da subjetivação de mulheres, homens, heterossexuais, homossexuais, transexuais. Algo escapa a essa cartografia, o real do sexo, que não cessa de não se escrever - como o ensina Lacan (1972-73) -, eis a mensagem dos deuses!, mas que, ainda assim, estamos sempre tentando (de)codificar/interpretar e/ou dominar, como os discursos reacionários contra o empoderamento feminino, contra os homossexuais ou desdenhosos dos transexuais indicam.

Ainda a respeito da feminilidade, mas agora articulando-a ao problema da criação de uma graduação em psicanálise: numa psicanálise, diante da angústia de castração e da inveja do pênis, abre-se a possibilidade da experiência da feminilidade e, desse modo, do desgoverno, do não domínio como uma afirmação, como positivação existencial de um desejo e de modalidades de gozo singulares. A abjeta graduação de psicanálise inaugurada pela UNINTER me faz perguntar: é possível garantir que uma graduação nos leve a uma experiência que não se ensina, a da feminilidade, na medida em que ela não é governável, mas, ao contrário, é a abertura à alteridade radical, ao não governo?

Comentários

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  2. Pedro, você conhece o trabalho "Buck Angel & Allanah Star" do artista Marc Quinn? É de 2009. É um artista do coletivo Young British Artists, surgido nos anos 90, que tem nomes como Damien Hirst, Mathew Barney (ex-marido da cantora Björk) e Ron Muëck e que mobiliza poéticas ciborgues e monstruosas, pós-humanas, que explodem as fronteiras entre natureza e cultura. Acho que você vai gostar.

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  3. Não conheço. Vou procurar na Internet, Léo! Obrigado pela dica!

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  4. Buck and Allanah tem tudo a ver mesmo com este post. Bem interessante! Obrigado pela dica!

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