Ou artes da existência ou normalização universitária

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Tendo em vista o interesse que meu texto de domingo passado parece ter suscitado - acredito que isso se deve à grave situação da criação de uma faculdade com formação de psicanalistas no Paraná -, continuo a tratar do tema da formação do psicanalista através de um diálogo com o campo das artes e da cultura.

Hoje articulo os temas formação, cultura e estética da existência, o último tendo sido disseminado pelo pensador Michel Foucault ao final de sua vida e obra, como, por exemplo, em A hermenêutica do sujeito (1982) e História da sexualidade volume 2: o uso dos prazeres (1984). Mas antes, gostaria de destacar, para o leitor, alguns momentos da história da psicanálise.

Michel Foucault

 1) Em Os primeiros psicanalistas, volume 1: 1906-1908 (CHECCHIA, TORRES & HOFFMANN, 2015), conhecemos melhor como funcionava o famoso Grupo das Quartas-feiras, que se reunia em torno de Freud no intuito de experimentar a transmissão da psicanálise, antes da fundação da IPA (International Psychoanalytical Association). O que se vê ali é muito interessante. Nem todos queriam se tornar psicanalistas, nem todos eram psicanalistas, mas todos estavam interessados na psicanálise. Além disso, Freud tentou determinar o seguinte funcionamento ao grupo: após a leitura de algum texto enviado ou sugerido por algum participante, todos os membros da reunião deveriam se pronunciar e registrar alguma reflexão desenvolvida a partir daquela leitura, em ordem sorteada, de modo a tentar diminuir a subserviência do grupo às intervenções do próprio Freud, por um lado, e, por outro, estimular a participação ativa dos demais na construção da psicanálise. Entre as comunicações havia de tudo: desenvolvimentos teóricos, impressões clínicas, dicas técnicas, discussões políticas, injunções a que se fizesse análise pessoal e supervisão, análise 'selvagem' do colega ao lado etc.

Naquele tempo, a formação do psicanalista se fazia nesse ambiente, além da prática da análise - e, às vezes, mas nem sempre, de supervisão. Um ambiente não padronizado no qual a autorização para que alguém passasse a atender como psicanalista parecia não se dar por um ritual, mas a partir da totalidade daquela experiência não objetivável, na qual, sem dúvida pode-se destacar o forte laço transferencial no grupo, a proposta de participação ativa e criativa de cada um e a contínua ênfase nos efeitos que a análise tem sobre cada um seja no lugar de paciente, seja no lugar de analista. Em suma: as dimensões ética e estética daqueles encontros são nítidas, e a dimensão política construía-se, paralelamente, na organização do Movimento Psicanalítico. 

Edifício onde se encontra a residência e consultório de Freud em Viena, no qual o grupo das Quartas-feiras se reunia. Hoje é um museu.

2) Somente em 1920-21, após já existir há uma década, é que a IPA começou a se dedicar a formar psicanalistas através de uma formação padronizada, normalizada e controlada, como a idealizou Max Eitingon e Karl Abraham (EITINGON, 1921). Mas entre a sua fundação e este momento não se deixou de reconhecer os pares como psicanalistas - e isso se deu através de meios não objetiváveis, mas sim a partir de suas produções, intervenções, adesões ao Movimento Psicanalítico, relatos a respeito de suas análises e clínica.

3) A partir dos anos 50, Jacques Lacan criticou profundamente o estado de coisas que encontrou na IPA. Ao longo daquela década e da seguinte, através de inúmeras intervenções, acusou a formação de psicanalistas da IPA de desviar-se da posição subversiva da psicanálise para outra, a de normalizar o psicanalista e torná-lo um agente da normalização dos pacientes, ato que não ocorre sem a subjugação do último ao primeiro, que é tomado como referência de indivíduo normal; tratar-se-ia de uma psicologia do eu que, no caminho contrário da psicanálise como Freud a praticou e transmitiu, trabalharia por fortalecer o eu contra o inconsciente. Um bom texto de referência, dentre outros, é "A psicanálise verdadeira, e a falsa" (LACAN, 1958).

Ao ser 'excomungado' da IPA, Lacan criou sua própria instituição de formação de psicanalistas e a denominou uma escola (1964). Importante lembrar que o termo escolhido não se deve à escola, liceu, colégio moderno. Mas às escolas da antiguidade (as filosóficas): lugar onde o sujeito se transforma através de um trabalho constante sobre si e sobre o saber, espaço de produção, crítica e posicionamento em relação à cultura. Portanto, um lugar onde se articulam estética (de si), ética (do desejo e do trabalho sobre si e sobre o saber) e política crítica/subversiva (posicionamento frente à sociedade).

Sêneca (autor anônimo, Museu Arqueológico de Nápoles), um dos mestres da arte da existência pesquisados por Michel Foucault 

Ao final de sua vida e obra, Michel Foucault se dedicou a estudar diversos temas que ocorrem historicamente nos séculos I e II de nossa era, o período helênico-romano. Chamou este período de 'Era de Ouro do Cuidado de Si' pois reconheceu naquela cultura greco-romana a proliferação e a difusão de práticas voltadas ao sujeito cuidar de si, a voltar-se a si mesmo e remodelar-se de acordo com certas referências éticas, utilizando-se de exercícios físicos e/ou espirituais. As escolas filosóficas eram lugares onde tais práticas estéticas da existência, onde tal arte de si ocorria com destaque. Um ponto importante a se salientar a respeito desta estética da existência greco-romana é que, diferente da cultura cristã e da moderna posteriores, o modo, o estilo que o sujeito deveria desenvolver em si mesmo a respeito de sua vida não era determinado por um código moral, mas construído eticamente a partir de saberes fragmentários - portanto, não de uma moral totalizante. Ora, o que estava em cena era, portanto, um modo de resistir ao poder através de um trabalho estético sobre si mesmo como sujeito ético - que se posiciona, decide, critica.

Foucault menciona que houve, ao longo da história do ocidente, tentativas éticas de, novamente, restabelecer uma cultura de si, uma arte da existência - em algum momento do Renascimento, no Romantismo, em Nietzsche...e eu proponho que a psicanálise tal como transmitida no grupo das quartas-feiras, tal como experimentada na valorização da própria análise, da supervisão e do modo como o sujeito se apropria da teoria psicanalítica e, principalmente, tal como Lacan tentou estabelecer no funcionamento de sua escola, pode ser compreendida ética, política e esteticamente como um esforço de subverter e criticar a moral totalizante através de práticas e exercícios espirituais em torno da experiência do inconsciente.

Se esta hipótese faz sentido, coloco a seguinte pergunta: pode uma transmissão da psicanálise assim, não normalizadora, que impele o sujeito a se trabalhar ética-estética-politicamente a partir de uma experiência não objetivável nem útil, que é a do inconsciente, ser repetida, decalcada ou desencadeada numa graduação de psicanálise na universidade? Minha impressão é de que não. O funcionamento moderno da educação formal, dos colégios à universidade, nada tem a ver com a experiência do inconsciente, muito pelo contrário: é absolutamente conforme ao funcionamento do nosso consciente - lugar psíquico onde Freud localizou as exigências de coerência, lógica racional, razoabilidade moral, relações de causa e efeito unívocas, dentre outras características, mas fundamentalmente, um lugar impedido pelo recalcamento de saber sobre o inconsciente. Recalcar é não querer saber do inconsciente (LACAN, 1960).

Cena satírica de aula de sexo em Monty Python: o sentido da vida (Terry JONES & Terry GILLIAM, 1983)

Se a universidade é um espaço de coerência com o funcionamento do consciente, será que pode-se dizer que também nada quererá saber do inconsciente? Psicanálise sem inconsciente? Voltaremos à justamente difamada psicologia do eu? Este perigo é real, na medida em que o culto contemporâneo, neoliberal, do indivíduo racional que gerencia sua vida com domínio é precisamente o que já prometia a psicologia do eu na década de 1950.

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