O erotismo no sagrado, a adoração do profano
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Escolhi abordar um quadro de Ticiano Vecellio, mestre entre os venezianos do século XVI - e ainda atualmente um mestre - na postagem de hoje. O quadro em questão, terminado em 1515, ganhou o nome pelo qual é reconhecido hoje apenas mais de cem anos depois de terminado. Foi comprado após a morte de Ticiano, em 1608, pela poderosa família de cardeais e mecenas Borghese, e já na coleção Borghese, de 1693 em diante, é conhecido pelo título de Amor sacro e Amor profano.
Amor sacro e amor profano (TICIANO Vecellio, 1515) |
O que se sabe hoje da história desta obra é que foi feita por encomenda de um noivo como presente para sua noiva tendo em vista o matrimônio próximo. Supostamente a mulher pintada vestida de branco representaria a noiva. Mas o quadro também costuma ser interpretado, e é essa a ênfase de Panofski (1979), p.e., como mais uma entre as diversas obras alegóricas do Renascimento. Neste caso, uma mulher representaria o amor sacro, puro, abençoado por Deus, um amor caridoso e cristão - próprio da ideologia católica neoplatônica que se restabelecia na Itália daqueles tempos -, a vestida; enquanto a outra mulher representaria o amor profano, sexual, pecaminoso e sedutor, representando bem as tentações da carne. Entre as duas estaria o Cupido, que, de algum modo, cria o elo entre elas, denotando o jogo delicado e erótico do amor, ao brincar com a água de uma fonte.
Auto-retrato (TICIANO Vecellio, 1567) |
Houve outras representações alegóricas do amor puro e virginal em oposição ao amor luxuriante e caído em perdição, mas este quadro de Ticiano me interessa - e por isso Ticiano é um mestre genial - porque de algum modo o pintor subverte a ingênua partição entre tipos de amor, além de não parecer dar nenhum tom de repúdio ao amor sensual, como costuma estar presente em obras deste tipo. Antes de eu mostrar como o artista mistura os amores retirando o peso moral que recaia sobre eles, quero fazer um comentário sobre a pintura veneziana da época.
Diferente da arte de Florença - que até o fim do século XV era o centro da cultura artística e humanística italiana - a arte veneziana tinha outras características que começaram a ser valorizadas no século XVI. A arte florentina era fundamentalmente neoplatônica, muito influenciada por Marsilio Ficino: buscava-se produzir uma obra que nos viabilizasse a experiência da contemplação das formas perfeitas; tratava-se de uma grande valorização do esforço intelectual do artista, de modo que o desenho, o projeto, era mais importante do que a obra acabada, seja na pintura, na arquitetura ou na escultura. Era a ideia, o desenho, a forma, o objeto de contemplação, a beleza estava ali (ARGAN, 1981).
A pintura de Veneza, por outro lado, recoloca o valor da cor e do cenário não mais como um espaço mental geométrico fortemente ordenado pelas leis da perspectiva. Por influência de Leonardo da Vinci (um florentino excepcional em relação aos outros, nos dois sentidos do termo excepcional), Giorgione constrói em seus quadros espaços difusos, marcados pela atmosfera e pela luz, esfumaçados, empíricos. E além da influência de Leonardo, Giorgione impõe o valor da cor para expressar sentimentos e ideias. A beleza, para os venezianos, está tanto na forma quanto na cor, tanto na geometria quanto no jogo de luz; a beleza não se experimenta apenas na contemplação das ideias eternas, transcendentais, mas também na empiria, na sensualidade do mundo.
A tempestade (GIORGIONE, 1508) |
Ticiano foi aluno de Giorgione e deu seguimento ao que virou o estilo veneziano e, justamente um quadro como Amor sacro e amor profano é um ótimo exemplo de que o que a forma diz, o espaço e as cores podem desconcertar e dizer outra coisa - propositadamente. Se as formas são alegorias do amor sacro e do amor profano, as cores e o espaço nos dão outra informação, em parte complementar, em parte divergente.
A mulher profana, associada conforme o senso comum, ao vermelho de seu manto, cobre sua vagina com o branco da castidade. Porém, a mulher de branco virginal, a noiva, traz vermelho em seu braço, que recai sobre a coxa, como um convite. Continuemos: a árvore no meio do quadro separa dois espaços, o da direita representando o mundo profano, com a sensualidade das cores de uma alvorada, nuvens se movimentando e cenas de caça...mas ali também é representada uma igreja (Haveria algo de profano no sagrado? Haveria algo de sagrado no profano?). E no lado sacro do quadro temos um castelo representando um espaço de difícil acesso, como o corpo de uma virgem, mas a caça (as lebres) está lá também, as árvores e flores sensuais lá estão também esperando o prazer de desfrutá-las. E, fundamentalmente, a árvore do meio do quadro não divide o mundo em dois espaços incomunicáveis; ela é apenas um efeito de ótica, de ponto de vista: toda a cena é colocada num espaço uno, realista, numa paisagem crível e contínua; a árvore não mostra dois mundos diferentes, mas o mesmo.
Continuo: (e isso parece ser a chave fundamental para a interpretação que quero defender) as cores acentuam o que a forma já fazia entrever - os cabelos loiros e a cor da pele ratificam que as duas mulheres são, na verdade, a mesma. E aparentemente não é outra que não Violante, amante de Ticiano, que era um homem casado.
Violante (TICIANO Vecellio, 1515-18) |
Me parece, assim, que Ticiano, famoso por sua arte sensual, através deste quadro, recusa a separação dicotômica e moralista entre amor sacro e amor profano. O profano impera por todos os lados e o sacro é apenas um modo do amor profano se vestir, seja a noiva, seja a igreja.
Se estou correto ou não talvez pouco importe, mas não quero deixar de comentar que esta interpretação converge com a abordagem freudiana do tema do amor. Em Freud é exatamente assim: o amor é antes de tudo sexual, a pulsão sexual é a base de todo amor, e ela busca o prazer com o órgão excitado através de uma descarga motora (FREUD, 1905). O amor sacro (em psicanálise se diria sublimado), é o efeito da moral, das expectativas culturais internalizadas que nos levam a recalcar e inibir nosso erotismo. A ternura é, para Freud, um erotismo carnal inibido, nada além disso. Donde a ternura que sentimos por nossos pais não ser outra coisa senão um efeito da interdição cultural de nossas tendências edípicas.
Destaque de partes de Amor sacro e amor profano (TICIANO Vecellio, 1515) para ajudar o leitor a perceber como se trata da mesma mulher - Violante |
Foi a partir destas ideias que Freud pôde interpretar a tendência do machismo a dividir as mulheres entre as 'santas', 'pra casar', e as 'prostitutas', 'pra transar' (FREUD, 1912). Esta dualidade viria do horror que acomete o homem machista de imaginar que sua mãe, além de ser uma santa, também é uma mulher que buscou e busca o gozo sexual: é difícil demais para o pequeno Édipo que há em cada homem aceitar e admitir que o desejo que sente pelas mulheres 'profanas' o liga inconscientemente ao lado 'carnal' de sua mãe, e, do mesmo modo, ele não quer saber que sua mãe deseja e muito menos que goza - é tentação demais! Muito do controle masculino da sexualidade feminina parte deste horror, entende Freud.
E Ticiano já se incomodava com esse dualismo há mais de 500 anos!
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