Bandeira da Felicidade e do gozo
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E começa 2022, ano prenhe de esperanças...ao menos para mim, mas sei que não somente para mim...De todo modo, o início de um novo ano nos faz pensar no futuro...e também no passado: entramos no ano do centenário da Semana de Arte Moderna. E quem sabe os artistas brasileiros de cem anos atrás, os modernistas que protagonizaram aquele acontecimento, possam nos ajudar a pensar e sentir nosso hoje? E será que nos ajudam a pensar também um futuro possível? Sim, eles nos ajudam. Manuel Bandeira certamente.
Cartaz da Semana de Arte Moderna de 1922 |
O meu preferido dentre os grandes nomes de 1922 é o poeta pernambucano Manuel Bandeira. Escolho um poema seu como tema do texto de hoje: o gozo. Leiam Felicidade, que se encontra em sua Antologia poética (1961):
Manuel Bandeira |
É muito interessante como as palavras de Bandeira provocam perplexidade ao ligar num poema chamado Felicidade temas como 'extinto gozo', 'vontade de se matar' e uma frase como 'Sou tão feliz!'. Se para o homem moderno a experiência era de choque diante destas associações, não se pode dizer que a reação do leitor ou ouvinte de hoje em dia seja diversa.
Em O mal-estar na pós-modernidade (1997), o sociólogo polonês Zygmunt Bauman diferenciou o homem moderno do atual, pós-moderno. Para ele, o primeiro foi bem descrito por Freud como alguém que sacrifica seu prazer individual em nome do laço com os outros, em nome da comunidade, em nome do amparo. Bauman percebeu no homem pós-moderno um outro modo de lida com o prazer: ele é o oposto do primeiro - em nome do prazer pessoal, individual, imediato, ele sacrifica o laço com os outros, seu pertencimento à comunidade e se vê às voltas com um desamparo impactante e - surpreendentemente - uma sensação de inexistência.
Zygmunt Bauman |
Se Bauman estiver correto, vê-se que o poema de Bandeira é atualíssimo. Ele nos coloca diante da verdade desta busca de prazer individual sem os limites que o outro nos coloca, em nome do laço. Este modo de proceder em busca da felicidade é, estranhamente, uma experiência de morte subjetiva, como pretendo mostrar.
Freud, de fato, dissertou sobre nossa busca pela felicidade em O mal-estar na civilização (FREUD, 1930) a partir da referência imaginária de um prazer absoluto. E, por isso, aliás, lá comentou que momentos de felicidade são passageiros, tendo em vista que a experiência do prazer se dá num contraste com os desprazeres que a realidade nos impõe. Anos antes, em "O problema econômico do masoquismo" (FREUD, 1924), Freud deu sua última palavra a respeito dos princípios que regem o funcionamento mental que vão ajudar meu leitor a entender melhor como o tema da felicidade é trabalhado a partir de Freud. Seriam eles o princípio do Nirvana, o princípio do prazer e o princípio de realidade.
O princípio do Nirvana é nossa tendência a buscar eliminar toda excitação psíquica, até chegarmos ao ponto em que a excitação - e, portanto, a energia psíquica - chega a zero. A pulsão de morte se identifica a partir do funcionamento deste princípio. Já o princípio do prazer é a busca pelo prazer e a evitação do desprazer; em parte, ele se acopla ao princípio do Nirvana, visando associar excitação a desprazer e descarga a prazer. E o princípio de realidade é uma modificação do princípio do prazer, levando em conta que o prazer a ser encontrado deve ser experimentado com algum objeto da realidade e não somente fantasiado - por isso, precisamos tolerar alguma inadequação do objeto real àquele fantasiado, devemos tolerar algum desprazer em nome de algum prazer. Uma vez que a busca por prazer supõe o investimento, o laço com um objeto de prazer, supõe também o movimento do desejo e, por isso mesmo, as pulsões sexuais ou de vida são identificadas quando percebemos estes princípios em ação. Por isso, os princípios do prazer/realidade funcionam como freios temporários ao princípio do Nirvana.
Ora, Freud, então, esboçou, desta maneira, a lógica por trás das práticas autodestrutivas, inclusive do próprio suicídio: tratar-se-ia do funcionamento psíquico conforme o princípio do Nirvana, no qual o objetivo seria alcançado com a eliminação de toda excitação, toda energia psíquica. A morte coincidiria com o momento de uma realização, na medida em que a excitação (inclusive a manutenção de laço com o objeto) seria da ordem do insuportável. Curioso e inquietante pensar que o rockeiro Kurt Cobain, em 1994, se suicidou, sendo ele o líder, cantor, guitarrista e compositor da banda Nirvana. Não tenho a menor ideia se Kurt Cobain conhecia a teoria freudiana, mas o nome de sua banda parece estar mais conforme ao princípio do Nirvana do que ao termo em sua acepção original, budista, que, mesmo que remeta a um estado de desfazer laços, também remete a uma 'iluminação', o que não parece ser o caso nem da estética de sua música, nem das suas letras, nem da sua morte.
Kurt Cobain |
Lacan passou a adotar o termo gozo para indicar a experiência de descarga pulsional que ultrapassaria a lógica do prazer e que faltaria ao sujeito movido pelas pulsões de vida, pelo desejo. O gozo se relacionaria, desse modo, com a experiência de morte do sujeito, com a pulsão de morte. Em seu O seminário livro 16: de um Outro ao outro (LACAN, 1968-69), relaciona o objeto causa do desejo, o famoso objeto a, com o tema do gozo, renomeando-o mais-de-gozar - ou seja, o gozo que não se tem ainda, que falta. O que se conclui daí é que o desejo existe enquanto experiência de um gozo ainda não alcançado. E também que o erotismo próprio do desejo aponta, em última instância, para um gozo que, se experimentado, é mortífero. Parece paradoxal, mas o desejo reduzido a desejo de felicidade ruma a uma felicidade suprema que elimina tanto o próprio desejo quanto o sujeito - algo que o psicanalista já trabalhava em seu seminário sobre a ética da psicanálise (id, 1959-60), mas que aqui foi retomado, ao se pensar, a partir da aposta de Pascal, a promessa católica de felicidade no Reino dos Céus, localizanfo o gozo num além, o que se ordenaria como motor da dinâmica que instala o desejo como falta e o sujeito como desejante (PASCAL, 1669).
Já em O seminário livro 10: a angústia (LACAN, 1962-63) podemos encontrar uma articulação da mesma ordem, porém mais precisa para nosso interesse aqui, dos temas desejo e gozo da seguinte maneira: o desejo só se sustenta enquanto o sujeito mantém distância do gozo. Quando esta distância é eliminada, quando a falta falta, o que se experimenta é a angústia como afeto e a afânise (o desvanecimento do sujeito) como efeito estrutural.
Mas, então, a experiência do gozo, pautada pelo princípio do Nirvana, é de angústia ou de felicidade? Parece que Freud e Lacan...e Manuel Bandeira...nos propõem que estas duas experiências - se a felicidade for considerada um sinônimo da plena satisfação - não são tão distantes assim, elas são vizinhas. Espera-se, clama-se, idealiza-se a felicidade, mas a aproximação do grande gozo causa horror e angústia. O momento seguinte à felicidade é o do tédio, pensava Freud em 1930, é o do desaparecimento, da morte do sujeito, pensou Lacan por quase toda sua obra, é o da morte, escreveu Bandeira. A realização do desejo, a satisfação, o gozo, se conjugam indelevelmente com a morte, portanto.
Compras no supermercado, o templo da felicidade pós-moderna |
O sujeito, em psicanálise, é um sujeito desejante e dividido, não um sujeito feliz porque está realizado, completo, consumado. Por isso Bandeira e a psicanálise são subversivos em relação a nossos imperativos pós-modernos de "Seja feliz agora!", "Com cartão de crédito tudo é possível", "Goze!", "Compre e se realize!". Eles nos avisam que esta lógica é mortífera, suicidária, perigosa e, no entanto, é vendida como felicidade. Será que podemos pensar um futuro que critique frontalmente estes imperativos e ressignifique a experiência feliz?
Que texto incrível..
ResponderExcluirPrimoroso e contemporâneo
ResponderExcluirObrigado, Emiliane! Obrigado, Patrícia!
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