Uma pressão surda

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Estamos nos aproximando do Natal e, por isso, me senti impelido a comentar e pensar a partir de alguma obra de arte que diga respeito a essa época do ano. Todavia, não se trata de uma obra natalina. Dia 22 de dezembro é a data de aniversário da primeira apresentação da Quinta Sinfonia de Beethoven, talvez sua mais famosa obra. No próximo dia 22, a obra fará 213 anos. Vida longa a ela e a Ludwig van Beethoven!

Ludwig van Beethoven (Karl STIELER, 1820)

Uma obra que se move da alta tensão à solenidade, à leveza e à grandiosidade. Mas, tomada como um todo, é certamente marcada pela tensão inicial, de cabo a rabo (ou à coda). Não à toa, seu primeiro movimento é o mais famoso, mais marcante: a frase simples, ritmada, insistente, que abre a sinfonia, jamais é realmente abandonada; outros temas surgem, mas sempre dialogando, repetindo, dando indícios do retorno ou mesmo da perduração do primeiro - que pode perfeitamente ser qualificado de tenso e ríspido, agressivo e impactante - difícil de se esquecer.

Partitura da Quinta Sinfonia de Beethoven, primeira página

A repetição, o retorno do tenso tema inicial, portanto, pode ser considerado o que noda toda a obra: uma pressão constante que, mesmo nos momentos em que a música se afasta dele, ele ainda está lá, surdo, pulsante, à espera de seu reaparecimento - como se cada gesto distendido, cada fraseado melódico que nos leva para longe do início 'soubesse' ser apenas um desvio que, inevitavelmente, retornará à pressão tensionada que insiste em se repetir, até que, apenas no final da obra, encontra, enfim, um descanso, já exausto.

O compositor alemão, ao escrever sua quinta sinfonia, já sabia há alguns anos de sua surdez progressiva; ele já não ouvia muito bem, e, como sabemos, a perdeu quase completamente nos últimos anos de sua vida. Talvez possamos dizer que o tema repetitivo e tenso, de certo modo, pode expressar a angústia do artista do som, sua luta contra o tempo, pois ainda ouve e depois não ouvirá. Uma pressão o impele a trabalhar; uma força surda se impõe e é preciso o som forte e intenso para combatê-la. O ouvido ainda é excitado pelos sons, é preciso afirmar a força do ouvido contra sua morte, contra sua surdez.

A aguada cabeça de Beethoven (Salvador DALÍ, 1978)

Beethoven é também o compositor da passagem do estilo clássico do século XVIII para o romantismo novecentista, da admiração pela modernidade e ímpeto revolucionário de Napoleão, do culto à vida e à liberdade tal qual Goethe, Schiller e seus contemporâneos intelectuais alemães. Mas a quinta sinfonia trata o tema da liberdade e mesmo o da vida de um modo mais crítico ou mesmo trágico, de certo modo antecipando a teoria do eterno retorno de Friedrich Nietzsche (NIETZSCHE, 1900): por mais que busquemos justamente pela liberdade e pela diversidade na vida, parece que retornamos sempre a algumas marcas,  alguns fragmentos repetitivos, eles estão sempre lá - aliás, pode ser que é a tentativa incipiente de nos livrarmos deles ou de elaborá-los é que nos faz, a partir deles, construir derivações e, em seguida, retornarmos a eles - até à morte. A liberdade e a plurivocidade da vida são, assim, temperadas pelo eterno retorno do mesmo, do mesmo modo como a guerra libertadora de Napoleão trazia o retorno de uma soberania autoritária derrubada alguns anos antes.

Napoleão atravessando os Alpes (Jaques-Louis DAVID, 1800)

Ora, não vejo somente em Nietzsche efeitos da obra do artista alemão, nascido em Bonn, porém tornado vienense. Um outro famoso vienense, muito depois, quando a obra de Beethoven já tinha superado a rejeição inicial e se tornado, talvez, a composição erudita mais conhecida do mundo, construiu um conceito importante, em sua teoria a respeito do funcionamento mental do humano, que se aproxima do que estamos falando, mesmo que saibamos que este vienense diferia num ponto, dos outros concidadãos: ele não gostava de música (GAY, 1988). Estou falando de Sigmund Freud e do conceito de trieb, traduzido, em geral, por pulsão.

O termo trieb é um termo utilizado na linguagem cotidiana alemã. O já mencionado Nietzsche o utilizara de modo mais insistente, indicando justamente o que está aquém e é condicionante dos atos e pensamentos, inclusive da razão (NIETZSCHE, 1888); seus tradutores utilizam instinto para se referir a trieb, e, às vezes, fazem o mesmo na tradução de Freud. O trieb, em Nietzsche, está intimamente relacionado à sua grande inovação teórica, a de que uma vontade de potência está na base de toda existência (id, 1900). Não é bem disso que se trata em Freud, apesar de haver um parentesco entre os pensamentos de sebos os autores.

Preferirei, ao tratar do trieb freudiano, utilizar, tal como se tornou comum entre os psicanalistas no Brasil, o termo pulsão, mesmo que este seja um aportuguesamento do termo francês adotado por Lacan para traduzir trieb - pulsion. É que, em nossa língua, faltam termos adequados: talvez impulso, quem sabe? Mas a tradição psicanalítica já consagrou pulsão como a tradução de trieb e não me oponho a tal termo, apenas fazendo uma ressalva: a linguagem de Freud é a do alemão coloquial, ele emprega palavras cotidianas justamente para que seu leitor possa se debruçar sobre o tesouro significante inconsciente que subjaz no uso normal de uma língua, na fala do dia a dia que praticamos mais do que nos apercebemos o que também dissemos, como ele mostrará em Psicopatologia da vida cotidiana (FREUD, 1901) e Os chistes e sua relação com o inconsciente (id, 1905). E pulsão é um termo obscuro, que imediatamente afasta o leitor de uma experiência e uso corriqueiro das palavras e o introduz num campo teórico árido.

Em Freud, se comparado a Nietzsche, trieb tem uma definição bem mais precisa e um pouco menos ampla quanto uma expressão da vontade de potência, mesmo que seja um conceito ainda bastante geral. Vamos a ele. A pulsão é definida por Freud, em seu artigo "As pulsões e seus destinos" (1915), como um estímulo interno desencadeador de uma pressão constante por descarga. Ela diz respeito a uma excitação nas zonas erógenas do corpo humano, que demanda descarga - sendo as zonas erógenas variáveis, porém havendo algumas privilegiadas: bôca, ânus, genitais, mamilos...mas, no caso de uma música, precisamos considerar - obviamente - os ouvidos também. Enfim, a excitação das zonas erógenas impele à descarga da pulsão e cabe ao aparelho psíquico encontrar destinos para a pulsão, criando um caminho da excitação à descarga motora; caso contrário a experiência é de desprazer ou mesmo angustiante. O aparelho psíquico nada mais seria, no final das contas, que a invenção ou o aprendizado e a manutenção de modos de descarregar esta tensão através de uma cadeia de associações de representações mentais, organizada através de fantasias, que ligam a excitação a ideias, permitindo, enfim o uso do aparelho motor como via de descarga. Produz-se sentido para aquela excitação surda, originalmente sem sentido algum, registrada apenas como traços insistentes que não se inscrevem como representações articuladas, mas somente marcas duras da experiência excitatória, como podemos ler na carta escrita por Freud a seu amigo otorrinolaringologista Willhelm Fliess, identificada nos arquivos de sua obra como "Carta 52" (FREUD, 1896).

Sigmund Freud

Os traços ou marcas, naquela carta, são nomeados de índices de percepção. Se referem a primeiras inscrições psíquicas diante do real que ainda não se articularam em cadeia associativa e, por isso, ainda não tem significação, posto que qualquer significação é efeito de uma associação. No esquema apresentado nesta carta, há ainda algo mais de interessante: ali, não se trata de ligar os índices de percepção de modo que se transformem em representações, mas sim de uma conversão ou tradução de um campo de registro para outro; ou seja, os índices de percepção, por mais que lhes atribuamos significados através de representações, resistem estruturalmente à captura representacional e continuam insistindo como marcas, feridas muito próximas do pulsional, do afetivo, não totalmente colonizadas pelos registros simbólico-imaginário. Talvez por isso Lacan, em O seminário livro 23 - o sinthoma (LACAN, 1975-76), tenha pensado a marca, o traço ou a letra, como algo na intersecção entre o real traumático e o simbólico: uma espécie de mínimo simbólico ou de 'real do simbólico'. 

O fato de os traços não serem perfeitamente traduzidos é próprio de qualquer ato de traduzir, é sempre imperfeito. A respeito da interpretação como recurso de tradução do inconsciente, inventado por ele mesmo, Freud antepunha uma cuidadosa prudência, ao transmitir a psicanálise aos jovens médicos e seus furores curativos que os faziam não mais escutar seus pacientes, ao lembrar o ditado italiano 'Traduttore traditore': o tradutor é um traidor (FREUD, 1905, 1913). Antes de querer traduzir, escutemos o que o sujeito diz. O mesmo vale a respeito das marcas que insistem, que se repetem: antes de tudo, que as registramos, que as escutemos e que reconheçamos nelas algo do sujeito. Ainda sobre a tradução: o próprio termo trieb e sua dificuldade de tradução para o português somado à escolha por pulsão como um suposto equivalente servem de dado empírico de como todo tradutor é um traidor.

Seja porque os traços insistem em não serem traduzidos, seja por a pulsão ser uma pressão constante, este trabalho psíquico para descarregá-la é sempre parcial, ela permanece latejante, pulsando por descarga, tal como o tema principal da Quinta sinfonia de Beethoven. Freud chega a dizer em outro lugar (FREUD, 1920) que as pulsões são conservadoras; elas visam ao restabelecimento de um estado anterior de coisas - seja a eliminação da excitação (o retorno a um ponto zero designando o que Freud chama de pulsão de morte), seja a manutenção de uma resposta específica à pressão, alinhada à experiência do prazer, como solução padrão (o que Freud chama de pulsão de vida). A Quinta Sinfonia é a manutenção do tema inicial como padrão organizativo? Ela é um esforço da vida, da audição de Beethoven continuar; mas ela é ao mesmo tempo um caminho em direção ao final da própria sinfonia, ao silêncio final, à surdez imperando, à morte, como é o caminho de toda vida, como Freud mesmo defende em 1920: a vida é um détour no caminho para a morte, as pulsões de morte sempre preponderam no final. A morte sempre vence. Mas a vida construída entre um silêncio e outro, a sinfonia da vida lutando contra a morte é o que traz beleza e valor à experiência humana.

Feliz Natal! Façamos de nossas vidas e de nossa luta contra a surdez, também, nossas sinfonias! 

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