RPG e castração
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O nome deste blog é Psicanálise, arte e cultura, é verdade... no entanto, hoje não tratarei exatamente de uma experiência artística, mas, sem dúvida, ainda assim, de uma experiência cultural estética contemporânea, que são os jogos do tipo RPG (Role-Playing Games).
É verdade que muitos destes jogos foram inspirados por trabalhos artísticos da literatura e do cinema, como a trilogia O senhor dos anéis de J.R.R. Tolkien (1954-55) ou a obra de H.P. Lovecraft O chamado do Cthulu (1928), e também inspiraram obras literárias, como a do escritor brasileiro contemporâneo Eduardo Spohr (2007-) mas meu interesse maior no texto de hoje recai sobre a experiência estética dos jogos, que implica uma certa dramaturgia, e não nas referências que os inspiraram ou se inspiraram neles.
J.R.R. Tolkien |
Para quem não os conhece, é preciso esclarecer mais ou menos do que se trata. Ainda mais porque algumas 'lendas urbanas', fakenews de fundamentalistas religiosos, os associam a cultos satânicos, o que é minimamente ridículo. Os RPGs foram inventados nos Estados Unidos na década de 70 do século passado e rapidamente se alastraram pelo mundo na medida em que fizeram bastante sucesso entre adolescentes e jovens, pareciam atender a alguma demanda latente destes grupos - ao menos nas décadas de 70 e 80. No Brasil se tornaram mais conhecidos entre adolescentes na virada dos anos 80 para os anos 90 - período em que eu mesmo era um desses adolescentes interessados e empolgados com os RPGs: por isso, este relato é em parte informativo, em parte fruto de uma experiência pessoal.
Dados de RPG |
A imagem que normalmente nos vem dos RPGs é de um grupo de jovens - em geral os assim chamados nerds - dos anos 70, 80 ou 90 sentados numa mesa, jogando dados estranhos durante horas - não está errado, mas é preciso dizer algo a mais sobre este assunto. Até hoje tais jogos existem, porém a apropriação por alguns videogames do termo RPG deturpou um pouco o sentido do mesmo. Parece que, para jogadores de videogame, RPG se refere a jogos de fantasia medieval em que várias missões devem ser realizadas, como investigações, batalhas, decifrações de enigmas, quebras de feitiços etc. a fim de tornar o personagem que o jogador conduz mais poderoso e glorioso e finalmente alcançar o sucesso máximo que é terminar o jogo. Trata-se de uma deturpação clara, própria do nosso mundo contemporâneo que idolatra o individualismo construído à base da capitalização narcísica (ou seja, no investimento afetivo da própria imagem como digna de amor porque parece poderosa, bela, perfeita...em psicanálise dizemos: fálica), do que era originalmente outra coisa. Em breve explicarei melhor o que é ou foi o RPG fora desta deturpação.
Jogadores de videogame |
Se o falo, para alguns, quer dizer o pênis enquanto órgão sexual ereto e potente, oferta e garantia de gozo, Freud foi claro, no artigo em que lançou a ideia psicanalítica de falo ("A organização genital infantil", 1923), em argumentar que o falo não é algo que se tem, mas bem mais algo que se idealiza, que não se tem - por isso mesmo, pôde reconhecer na atividade masturbatória das meninas com seus clitóris também a expressão desta fantasia fálica. Meninos e meninas se envolvem com esta fantasia fálica em que experimentam seu corpo como uma unidade de prazer, centrada no grande prazer com o órgão que os faz crer em si mesmos como tendo um gozo fálico. Jacques Lacan, no seu O seminário livro 5: as formações do inconsciente (1957-58) esclarece ainda que são os pais que, geralmente, depositando nos filhos a compensação de suas dificuldades, frustrações, insatisfações, os veem, antes mesmo que aqueles se deem conta disso, como complementos a seus narcisismos machucados, como - portanto - seus falos. Eles lhes fazem felizes, realizados, potentes de novo, são extensões de seu narcisismo, como indicava Freud em "Sobre o narcisismo: uma introdução" (1914). Em seguida, os filhos poderão se identificar com isso e desenvolver seu amor por si mesmos, seu narcisismo como ilusão fálica. O falo imaginário é, psicanaliticamente, portanto, o complemento narcísico para que o sujeito se veja como potente. Por isso digo que os jogos de videogame tornaram o RPG uma experiência estética falocêntrica, em que o que se busca é a potência do personagem como prótese para a sensação de impotência do jogador, de modo semelhante à busca dos pais de verem nos filhos seu complemento fálico.
Jacques Lacan |
Em jogos comuns, o que se busca é a vitória, derrotar os adversários, e, assim, ter um gozo fálico, uma experiência ilusória de potência. Mas os RPG foram inventados para serem justamente outra coisa e creio que é esta outra coisa que atendia à demanda reprimida dos jogadores. E é isso que pretendo mostrar agora.
Basta ler os livros de regras de qualquer RPG clássico, seja o mais famoso e primeiro, Dungeons & Dragons , ou simplesmente D&D (GYGAX & ARNESON, 1974), sejam G.U.R.P.S. (JACKSON, 1986), Vampire (REIN-HAGEN, 1991) ou Rolemaster (CHARLTON, CURTIS, FENLON & MARVIN, 1980), por exemplo, que se encontrará sempre esta descrição do que é um jogo de RPG: Ali vemos que - como o termo role-play indica - o objetivo do jogo não é ganhar, vencer, derrotar os outros, mas sim interpretar um personagem que interaja com os outros personagens interpretados pelos outros jogadores, de modo a formarem um grupo de ajuda mútua, cooperativo, que busca, através de estratégia, sorte, e interpretação, cumprir as missões a que são designados por um dos jogadores, que ocupa lugar e função diferente dos outros: o mestre do jogo. Me parece que a demanda reprimida dos jovens das decadas de 70 a 90 era essa: demanda de solidariedade e laço, como algo diferente do individualismo cotidiano. Não por acado esses jogos foram inventados no centro do individualismo mundial: os E.U.A. Não por acaso esses jogos atraíram os nerds: aqueles que eram excluídos dos grupos populares, ou seja, dos grupos fundados em torno da ideia de indivíduos bem sucedidos na cadeia alimentar social estadunidense, como se vê repetidamente em filmes que se passam em escolas ou universidades daquele país, destinados ao público adolescente, principalmente nas produções oitentistas de Hollywood dirigids por Jogn Hugues (p.e.: Gatinhas e gatões [HUGUES, 1984], Clube dos cinco [id, 1985] e Curtindo a vida adoidado [id, 1986]).
Voltemos ao RPG e sua descrição. Ainda é preciso deixar claro o papel do mestre do jogo. Ele também não joga para ganhar. Sua função é a de monta o cenário, apresentar a situação em que os personagens se encontram, e - através das regras do jogo - introduz os desafios que os outros jogadores deverão enfrentar coletivamente, ou às vezes, separadamente. Mas ele não ganha se os outros perderem, não funciona como a banca de um cassino. Ao contrário, sua função é oferecer a eles uma experiência prazerosa. Logo, o RPG não é um jogo que favorece o individualismo, nem o gozo fálico, mas, ao contrário, a experiência de um prazer compartilhado na medida em que cada jogador sabe que seu personagem tem virtudes e fraquezas e que os desafios foram pensados e construídos de modo a cada um ou a equipe serem necessários para a realização das tarefas; trata-se assim de um ambiente propício a se construir amizades sem competição. Cada personagem é montado de modo a ter algumas habilidades e algumas limitações, de modo que precisam uns dos outros e da capacidade de cada jogador de interpretar bem seu personagem para que se busque realizar as tarefas ali colocadas.
O jogo fez tanto sentido para tanta gente que hoje não é mais um jogo exclusivo de adolescentes. Aqueles que eram adolescentes nos anos 70, 80 e 90 cresceram e muitos deles continuam a jogar, porque ali se cultiva a amizade e um modovde se relacionar menos hostil do que a vida profissional ou a disputa amorosa. Talvez valha a pena, em outro texto, me dedicar a um estudo mais longo sobre a amizade, mas não isso não será feito aqui e agora. Ainda assim, remeto o leitor a História da sexualidade 3 - o cuidado de si (FOUCAULT, 1984) como uma boa entrada numa discussão intelectual a respeito da importância da amizade na experiência subjetiva.
Jogadores de RPG, foto postada por Oniguuomo no Reddit |
Tuso o que foi dito até aqui sobre o RPG desfavorece mas não impede que ou um mestre do jogo ou algum jogador deixe os propósitos básicos do RPG e busque apenas seu prazer individual e queira, no jogo, apenas testar a sua potência ou a de seu personagem (com quem se identifica). No jargão de RPGistas, este será tachado de bad player, mau-jogador, exatamente porque perdeu de vista o sentido daquela experiência estética que se corrói quando se introduz ali a imposição do gozo fálico individualista. Em breve ele não será muito bem vindo em mesas de jogo. O jogo de RPG parece só ser divertido para os participantes que lidam com ele tal como ele é apresentado nos livros de regras quando a experiência se aproxima ao máximo do avesso do gozo fálico.
Em psicanálise, a operação simbólica que nos faz reconhecer nosso narcisismo como incompleto, 'ferido', nossa potência como limitada e nosso gozo como impedido de ser levado à radicalidade do apagamento dos laços, se chama castração (FREUD, 1923). Somos castrados do falo; o falo é o que não se tem - isto nos civiliza, isso cria laço social, nós precisamos dos outros humanos para viver, nos relacionar, sentir prazer. A própria direção do tratamento psicanalítico passa pelo reconhecimento, por parte do sujeito, de sua própria castração. Nesse sentido, me arrisco a dizer que os jogos de RPG direcionam os participantes a uma experiência social e estética da castração e são a prova de que a castração, a falta, e sua declinação em desejo, fazem laço, lançam o sujeito na troca afetiva com outros humanos, não são um revés, mas, ao contrário, condição de socialização (LACAN, 1955-56). Ao menos no meu caso, contribuíram também para o interesse pela psicanálise.
Dom Quixote (Honoré DAUMIER, 1868) |
Uma última nota vem ilustrar o que quero dizer: ao jogar com diferentes personagens, em partidas diferentes, alguns jogadores se dão conta, sozinhos ou por devolução dos seus companheiros de jogo, de que - à revelia de sua vontade - repetem atitudes, estratégias, estilos, modos de se relacionar ou seja lá o que for. Logo se percebe que se trata da repetição de algo nem sempre consciente: trata-se de uma maneira quase didática de se aprender que o eu não é senhor em sua própria morada (FREUD, 1917). Aprende-se que por mais que o eu queira direcionar as coisas para uma certa imagem, queira ser um indivíduo que domina a si mesmo e seu modo de expressão (e, no caso, domine seu personagem para que ele seja idêntico ao script pensado), ele é, na verdade, o tempo todo conduzido por forças inconscientes que impõem ao personagem características não antevistas e, às vezes, indesejadas. Freud já nos falava, em O eu e o isso (1923), das relações entre estas duas instâncias, o eu narcisista e o isso (o inconsciente) através desta bela metáfora: O eu é como o cavaleiro e o isso é como o cavalo; o cavaleiro crê dominar o cavalo, mas na realidade se o cavalo quiser correr ou parar, o cavaleiro é impotente diante dele, e, se o cavalo quiser ir em certa direção, o cavaleiro nada pode fazer senão acatar. Está aí um bom exemplo de como o RPG é um encontro com a castração e uma porta aberta ao interesse pela psicanálise.
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