O Cristo trágico contra o sucesso em Cristo

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Entre o Natal e o Ano Novo não há mais como desviar do tema do nascimento de Jesus Cristo. Ou melhor, um pequeno desvio ainda se faz - sim, hoje comentarei uma obra estética que discute a vida de Cristo, porém não seu nascimento; o assunto é mesmo sua vida e morte como filho de Deus. A obra é o filme A última tentação de Cristo, de Martin Scorsese, lançada em 1988.

Capa do DVD de A última tentação de Cristo (Martin SCORSESE, 1988)

O filme, inspirado no livro de Nikos Kazantzákis, A última tentação (1952), é, provavelmente, a melhor obra cinematográfica a respeito de Jesus Cristo. Ali vemos Jesus como um humano que, por ser filho de Deus, sofre profundamente de uma divisão psíquica: Sou santo ou sou um humano comum? O que desejo? Atender à vontade do Pai ou seguir outro caminho? Esse sujeito dividido entre o desejo do Outro e aquilo que seria expressão de um desejo singular é um tema bastante articulado na obra de Jacques Lacan - e pretendo introduzir o leitor nesta discussão aqui.

Mas, antes, tratemos do filme - e do diretor. Scorsese teve formação católica, é um novaiorquino de origem ítalo-americana - o que, para os padrões étnico-raciais estadunidenses, quer dizer que ele é um pouco um outsider. A geração de cineastas rebeldes que emergiu nos Estados Unidos na virada dos anos 60 para os anos 70 é, de fato, uma trupe de outsiders. Do grupo de cinco amigos formado por Scorsese, Francis Ford Coppola, Brian de Palma, Steven Spielberg e George Lucas, três são ítalo-americanos, um é judeu e o último é aquilo que os americanos chamam de nerd. Some-se a eles outro judeu e nerd, Woody Allen, e teremos os maiores nomes do cinema americano que despontaram e transformaram a forma de fazer cinema em Hollywood, de lá para cá. Suas obras, pela forma e pelo conteúdo, são críticas às vezes disfarçadas, às vezes mordazes ao capitalismo, ao status quo, ao american way of life, principalmente defendido e identificado aos W.A.S.P. (White anglo-saxan protestants [protestantes brancos anglo-saxões]).

Mesmo Spielberg e Lucas, aparentemente bastante bem acomodados ao stablishment, produziram filmes críticos, em meio a outros de pura diversão. Por exemplo: Spielberg, sempre que pode, aborda o tema do racismo; ele é o autor de A cor púrpura (SPIELBERG, 1986), O império do sol (id, 1987) e A lista de Schindler (id, 1993). E Lucas sempre esteve ocupado com a humanização das vítimas do imperialismo e da dominação, como se vê em THX-1138 (LUCAS, 1971) e até mesmo em sua trilogia blockbuster de Star Wars (id, 1977; KESHNER, 1980; MARQUAND, 1983).

É notável que outros três nomes que surgiram nesta época, excelentes cineastas, igualmente críticos àquela cultura, não sejam imediatamente associados aos acima mencionados - justamente por os três serem de origem W.A.S.P.: Clint Eastwood, Terrence Mallick e David Lynch. Mas, voltemos a Scorsese.

Martin Scorsese

Martin Scorsese, ele mesmo tendo quase se tornado padre e abandonado o seminário, diversas vezes em sua obra aborda seja o tema da experiência religiosa, seja o tema do sujeito que luta para se erguer e se tornar, ele mesmo, um herói, a expressão em vida de um desejo que se impõe às adversidades...mas, em algum momento uma questão emerge: será este desejo dele mesmo ou seria ele, apenas, um instrumento do desejo do Outro? É, então, que ele sucumbe diante da angústia que tal incerteza lhe impõe, pois põe em risco o sentido de sua própria existência. 

Quanto ao tema religioso, pode-se vê-lo presente em diversos filmes de Scorsese, às vezes como o foco principal do enredo, às vezes como assunto lateral; por exemplo, em: Caminhos perigosos (1973), Touro indomável (1980), o próprio A última tentação de Cristo (1988), Kundun (1997), Vivendo no limite (1999), George Harrison: Living in the material world (2011), Silêncio (2016) e O irlandês (2019).

E quanto ao sujeito que busca se tornar um herói, mas sucumbe, o vemos com mais clareza em: Taxi driver (1976), New York, New York (1978), Touro indomável (1980), Depois de horas (1985), novamente em A última tentação de Cristo (1988), Contos de Nova York (1989), Os bons companheiros (1990), Vivendo no limite (1999), O aviador (2005), George Harrison: living in the material world (2011), O lobo de Wall Street (2013) e Silêncio (2016).

Os dois temas se articulam em diversos desses filmes, e, de forma muito interessante, em A última tentação de Cristo. As referências católicas de Scorsese inserem de modo indelével o sujeito dividido numa cultura protestante-liberal estadunidense onde se espera que o indivíduo se realize como um eu puro, inteiro, sem arestas e assim se torne um winner, um vencedor. O constante estudo da divisão do sujeito em seus filmes faz de seu cinema  um esforço desidealizador das mensagens de auto-ajuda, terapias do eu ou simplesmente dos ídolos supostamente idôneos do empreendedorismo, da realização de si em vida como exemplo maior da happiness e do success norte-americanos. O próprio Cristo, no filme em questão, é retirado do lugar em que certa corrente neopentecostal tenta colocá-lo: o de um ser reto, direto, sem conflitos, que realiza uma grande obra: transmitir a mensagem do amor, dar a direção moral da humanidade e, deste modo, salvá-la. Um Cristo associado à vitória e ao poder.

Sabemos que quando do lançamento do filme, o então papa João Paulo II também se posicionou de modo extremamente crítico à obra - o que mostra que não se trata também de um filme feito para agradar católicos, afina, no filme, Jesus tem relações carnais com Madalena e, depois, com as irmãs Maria e Marta! Mas o que quero dizer é que, mesmo que provocativo até mesmo aos católicos, o filme carrega os cacoetes de quem teve educação católica, para a qual, como mostra Lacan, no 16⁰ ano de seu seminário, o sujeito católico-moderno é fundamentalmente marcado pela divisão, o sujeito é faltoso, seu gozo está no Além e, assim, ele é categoricamente atravessado e constituído por um desejo (LACAN, 1968-69).

O Cristo de Scorsese é um homem em conflito. Seja o conflito referente a seu desejo sexual por Maria Madalena, seja o conflito referente às tentações do Diabo, seja o conflito referente à vontade de ser uma pessoa comum, por um lado, e um emissário das Boas Novas que Deus quer que Ele transmita. Certamente estes conflitos se relacionam no filme e nos remetem a uma questão mais profunda abordada seja por Scorsese, seja por Lacan: como identificar a expressão de uma verdade sobre si na afirmação de um desejo?

Cena do filme A última tentação de Cristo (Martin SCORSESE, 1988), Jesus no deserto

Afinal, este desejo é realmente meu ou vem do Outro? Não importa aqui se este Outro se refere a Deus, ao Diabo, ao grupo social e suas convenções, a uma organização como a Máfia ou alguma outra instância - elas variam nos filmes de Scorsese -;  a questão acerca do que o Outro quer de mim está sempre lá em seus filmes. 

Foi justamente Lacan - ele também fortemente marcado pelas tradição e educação católicas - quem proferiu a máxima, propositadamente ambígua: o desejo é o desejo do Outro (LACAN, 1957-58). Isso quer dizer, ao mesmo tempo, que desejo que o Outro me deseje e que construo meu desejo nas trilhas do desejo do Outro. É essa segunda acepção que me interessa hoje. Construímos nosso desejo a partir das referências que o Outro nos dá do que deve ser desejado, do modo como se deve expressar o desejo e, claro, do que é interditado desejar. O efeito disso é que, quando o sujeito toma a palavra para expressar seu desejo, toma o discurso do Outro para falar de si, usa termos, enunciados, sentenças escutadas ou lidas para falar de si. Deste modo, o sujeito fica dividido entre se alienar no discurso e no desejo do Outro ou aparecer como pura diferença em relação a eles. 

Jacques Lacan

No seu O seminário livro 7: a ética da psicanálise (1959-60), Lacan sustenta o argumento de que a ética da psicanálise é a ética do desejo. O caminhar de uma análise levaria o sujeito a não abrir mão de seu desejo; obviamente é um caminho dificil, pois ele estará sempre enredado na incerteza em relação ao desejo que sustenta: é um desejo como pura afirmação da diferença que me singulariza ou isso é alienação no desejo do Outro? Não por acaso a grande referência literária a que Lacan remete seu público, para tratar deste tema, é a figura mítica da Antígona apresentada por Sófocles na peça homônima, heroína trágica, nascida do incesto, que não abre mão de seu desejo de dar um enterro honrado a seu irmão, mesmo que tenha que morrer por isso. 

Capa do e-book Kindle Antígona (SÓFOCLES), versão em espanhol

Ora, a figura heróica, trágica, sofrente por ter de se decidir a sustentar um desejo, estando ela dividida entre um desejo que a leva à morte real e outro que a destitui simbolicamente de seu lugar, é também a do Cristo de Scorsese: 'Devo morrer na cruz, me sacrificar em nome do Pai ou devo abdicar disso e ser humano, gozar da vida?'. No fundo é a mesma questão que aparece na famosa aposta do filósofo e clérigo católico jansenista Blaise Pascal se devemos ou não seguir os preceitos cristãos de interdição aos prazeres em nome de um gozo no Além (PASCAL, 1669; LACAN, 1968-69). E é também a de diversos outras personagens do diretor, como os protagonistas de Touro Indomável, Os bons companheiros, Silêncio e O irlandês.

Scorsese e a psicanálise lacaniana, talvez por suas origens católicas, põem no primeiro plano o sujeito dividido, em conflito consigo mesmo que, pela incerteza a respeito do que é o desejo que o move, emerge como crítica profunda ao ideal transparente de equivalência entre o eu e o desejo presente no discurso neoliberal e no discurso neopentecostal do self-made man. Por isso as obras dos dois são muito importantes na atualidade, ao menos como contraponto crítico a um modo massivo de se conceber tanto a ética quanto a moral que regulam nossas existências.

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