Édipo de trás para frente: da cegueira aos pés tortos

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Estava demorando, mas o famoso Édipo aparece agora aqui neste blog. É um lugar-comum associar o discurso psicanalítico ao herói grego; há mesmo quem reduza toda a obra teórica psicanalítica ao Complexo de Édipo. Minha intenção é tomar a tragédia de Sófocles, Édipo Rei (~427 a.c.), e, a partir dela, explorar o tema edipiano por outra via - ao contrário.

Édipo e a Esfinge (Gustave MOREAU, 1864)

Freud cunhou o termo Complexo de Édipo para delinear um grupo de fantasias e associações psíquicas que geralmente acomete as crianças por volta de seus 4-5 anos e marca nossas vidas desde então até a morte. Seriam fantasias de incesto com a mãe e de parricídio imiscuídas a fantasias de incesto com o pai e rejeição da mãe, em geral relacionadas também ao Complexo de castração: o conjunto de angústia, inveja e soluções diversas para o desejo que o sujeito tem de encontrar diante da descoberta de que tanto seu prazer masturbatório é interditado pelas figuras parentais de quem se tem medo de perder o amor, quanto de que é destituído do lugar narcísico de falo da mãe (FREUD, 1923, 1925; LACAN, 1957-58).

Tamanha crise levaria a criança a um impasse psíquico cuja solução costumeiramente acaba sendo um processo de recalcamento maciço destas mesmas fantasias (elas são tornadas inconscientes) e, concomitantemente, a interiorização destas figuras parentais como referências morais, idealizadas, que passam a agir sobre nossos eus como interditores do incesto, observadores, juízes e ao mesmo tempo sedutores para a realização daquelas mesmas fantasias; essa interiorização dá origem tanto ao ideal do eu (referência, construída a partir das imagos parentais, que indica quem devemos vir a ser como sujeitos) quanto à nossa consciência moral e àquilo que Freud chamou de supereu: uma pressão por obedecer e, paradoxalmente, transgredir a vontade dos pais. Seu texto de referência aqui é O eu e o isso (1923).

Sófocles

Freud chegou a dizer que o Complexo de Édipo é o núcleo de toda psiconeurose e até mesmo de toda nossa subjetividade. Entretanto, não reduziu suas teorias a respeito do funcionamento psíquico ao tema edipiano; por exemplo, em sua obra ocupam lugar de maior destaque outros temas como o narcisismo (mais associado ao complexo de castração que ao edípico, mesmo que estejam interrelaciondos [FREUD, 1914]), as ações das pulsões na mente e no corpo (id, 1905) ou mesmo o efeito dos traumas reais e desetruturantes no sofrimento do sujeito (id, 1920).

Ainda assim, nas décadas de 40 e 50 do século passado, após a morte de Freud, a tendência entre psicanalistas era centralizar toda sua escuta em torno do Complexo de Édipo e trabalhar de modo normalizante, edipianizando seus pacientes mais do que se ocupando em escutar o inconsciente deles que, como sempre propôs Freud, é singular - e não um compêndio de conteúdos padronizados em cada um de nós. Se todos passamos pelo Édipo, o que conta na escuta não é encontrar o Édipo e sim, como se configura originalmente o Édipo deste sujeito bem como o que, nele, escapa e não se reduz ao Édipo.

Jacques Lacan

Em resposta a esse tipo de psicanálise, Jacques Lacan desenvolveu em seu ensino, em sua clínica e em sua política psicanalítica uma crítica radical do modo como se psicanalizava e, por consequência, precisou repensar o Complexo de Édipo. Num primeiro momento (p.e., em seu O seminário livro 5: as formações do inconsciente, 1957-58), o retomou a partir de uma leitura estrutural, em que não se trata mais da mãe, mas sim de uma função materna (de investimento no bebê como substituto do falo) e não mais de um pai, mas de uma função paterna marcada justamente pela interdição do incesto com a mãe. Mais adiante, ao final de seu ensino (p.e., em seu O seminário livro 23: o sinthoma, 1975-76), Lacan chegou mesmo a considerar a situação edípica como um mapeamento, uma organização possível da experiência-psicossocial, algo que torna possível nodar o simbólico, o real e o imaginário de cada um de nós; certamente a mais comum, compartilhada coletivamente, mas não a única.

Gilles Deleuze e Félix Guatarri

Vale mencionar também a crítica ácida de Gilles Deleuze & Félix Guatarri, O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (1972), onde defendem o argumento de que o Édipo não é o conteúdo do inconsciente; ao contrário, ele é já uma interpretação conservadora, do status quo, do que se passa no inconsciente. Para eles, o inconsciente deve ser pensado bem mais como uma máquina produtora de encadeamentos, de agenciamentos desejantes esquizofrênicos.

Entendo que ainda hoje é preciso considerar o cuidado de Freud, as críticas de Lacan e parte das críticas de Deleuze & Guatarri porque a vulgarização da psicanálise ainda se dá através desta edipianização dos pacientes e da sociedade.

Édipo e a Esfinge num Vaso Ático (470 a.c.), Museu do Vaticano

Então decidi propor uma brincadeira, porém séria. O objetivo da psicanálise não é edipianizar, esse é o objetivo da cultura, que transmite o Édipo compulsivamente (FREUD, 1912-13). O da psicanálise é o reverso disso, está aí um dos motivos porque ela é uma prática subversiva - sendo assim, o percurso de uma análise pode ser pensado como se fosse a tragédia e o mito de Édipo contados de trás para frente. Ao contrário do curso comum do mito, o que veremos é um Édipo trágico tornar-se um tirano e depois diluir-se num forasteiro, viajante, aberto para viver uma aventura.

1) Imaginemos, assim, o final da peça como o começo da análise: tal como o Édipo da última cena, o paciente neurótico chega à análise sofrendo, se considerando despossuído do gozo, do poder e da alegria que uma vez crê ter tido. Além disso, está cego, não consegue ver, não quer ver (Edipo furou os próprios olhos) as causas de seu sofrimento, mas se o paciente procurou uma psicanálise é porque já está marcado por essa característica quase definitória do personagem Édipo: ele quer saber, é dominado pela vontade de saber (FOUCAULT, 1970-71).

2) Se voltarmos no tempo da peça, temos a sinistra descoberta de Édipo: ele matou o pai e teve relações incestuosas com a mãe, mesmo sem saber disso, e, com isso, Jocasta - a mãe - se suicida. O neurótico, num segundo momento de análise - e, portanto, não ao final dela! - traz à tona o Complexo de Édipo. Este manancial de fantasias incestuosas e assassinas com os pais, cheio de engodos imaginários, põe o sujeito diante do problema de conseguir se desvincular da mãe, em geral a figura da qual o neurótico teme se afastar psiquicamente, pois assim se veria incapaz do maior gozo, da maior felicidade que ele jamais conheceu.

3) Momento anterior da tragédia de Sófocles: Édipo empreende uma investigação para descobrir o que, o porquê e quem estaria causando a peste em Tebas. O analista, através de suas intervenções, questionamentos, cortes, interpretações, auxilia o paciente a se deslocar da história já pronta e fechada chamada Complexo de Édipo, e o efeito é um trabalho do paciente de buscar saber, investigar o que se passa em sua mente além - ou aquém - da situação edípica. O que há por trás? O que há a mais ou a menos em seu inconsciente? O que diverge?

4) Édipo mata Laio no mito. Como Freud escreveu, se quisermos combater a neurose, devemos matar o pai. Em outras palavras: uma análise nos torna menos submissos ao supereu; menos alienados no discurso do Outro - diria Lacan. Foi a travessia, através da investigação, da abertura além do Édipo, o que permitiu essa atitude psíquica. Ela dá espaço para que nós nos responsabilizemos e sustentemos nosso próprio desejo, sem álibi no pai ou em quem quer que seja. O pai permanece como uma referência, é claro, mas não mais como um tirano que exige obediência.

Édipo e a Esfinge (Dominique INGRES, 1827)

5) Na peça e no mito, na estrada para Tebas, Édipo venceu a Esfinge. Este monstro encurralava os passantes naquela estrada e ameaçava devorá-los caso não soubessem responder a um enigma. Ninguém jamais sobreviveu exceto Édipo, que conseguiu resolver o tal enigma e, assim, derrotar o monstro; por isso ele é um herói - Édipo libertou a cidade daquela terrível criatura. A resposta do enigma: "O homem". A pergunta: "Quem anda primeiro com 4 patas, depois com 2 e, finalmente, com 3?". Trata-se, então, da infância, da idade adulta e da velhice. Em todos os sentidos trata-se de um enigma de vida ou morte. 

Proponho, então, que este momento seja associado à direção mesma que uma análise deve levar. Me refiro ao momento em que o paciente já não está mais preocupado nem preso às diversas narrativas e fantasias que já percorreu de todos os modos possíveis; nenhuma delas o captura integralmente, nem o mito do pai rei. O sujeito está diante de seu próprio desamparo fundamental, da monstruosa falta de referências de como lidar com a vida e, por extensão, com a morte, está diante do furo que marca indelevelmente o campo simbólico, o qual se mostra inconsistente e insuficiente na possibilidade de dizer sobre o sentido do sujeito (LACAN, 1968-69). A existência surge como enigma, como angústia talvez. Mas se ele a encara, ele passa, daí em diante, a observar, contar e levar sua vida como algo a respeito do que deve deliberar e enfrentar afim de construir seu percurso, na medida em que os percursos construídos por outrem só lhe servem parcialmente. Ao mesmo tempo a toma como enigma e como lugar de enfrentamento de seus monstros, em ato; sem referência senão a sua situação de homem mortal, com um caminho percorrido e outro a construir. Não é disso que Freud fala, em "Análise terminável e interminável" (FREUD, 1937), quando pensa que uma análise nos levaria a deixar de lado modos antigos de nos defender quando temos de lidar com situações novas e não as medmas de outrora, ou seja, na contramão desse modo de proceder, uma análise nos levaria a enfrentar a realidade?

Enfim, uma análise deve ir além da conservação do drama edipiano que neurotizou o paciente. Uma análise deve levá-lo a construir um olhar sobre a vida como ela foi, como ela o constituiu e onde o deixou. E ainda, através deste trabalho de debruçar-se sobre si mesmo, o analisante vai encontrar a potência possível para enfrentar o que o imobiliza, obstrui e, do seu jeito, agir e prosseguir pela estrada: caminho que o destitui do lugar de herói e o transforma num viajante amparado/erguido apenas por seus pés tortos, cujos passos são esquisitos, mas são seus. E isso é libertador.

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