Reconhecer o trauma, cuidar da ferida na Mão

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Mão é o nome da escultura monumental, de sete metros de altura, que integra o conjunto arquitetônico do Memorial da América Latina (1989), projetado por Oscar Niemeyer, na cidade de São Paulo. Apesar do conjunto todo ser impressionante, apesar do conjunto de toda a obra de Niemeyer ser espetacular, me detenho em sua Mão. Ela é importante para nosso agora.

Mão (Oscar NIEMEYER, 1989)

A mão em questão é uma escultura, porém ela foi projetada por um arquiteto, e, por isso, deve ser pensada, também, arquitetonicamente. Não só por ser monumental, mas também por estar situada precisamente numa praça em que dialoga com todo o conjunto de edifícios do Memorial da América Latina e - na verdade - funciona  mesmo como elemento harmonizador, de unificação do espaço, como também tem a função de revelar o próprio sentido de ali haver este tal Memorial. Se os outros prédios nos fazem sonhar, à moda do Niemeyer arquiteto de Brasília, com um futuro otimista, o contraponto está na Mão: ela condensa a história da América Latina.

Memorial da América Latina, São Paulo (Oscar NIEMEYER, 1989)

Uma mão aberta erguida do chão, ferida, cujo sangue escorre formando o mapa da América Latina. Uma mão erguida do chão, ferida, me remete ora a um pedido de socorro, ora a um último adeus, ora a uma mão que não se fecha, mas, ao contrário, quer exibir o corte cheio de sangue a quem a olha. Qualquer uma das possibilidades levantadas sempre implica que esta mão em espasmo se endereça a nós, o público que visita o Memorial da América Latina, o qual existe precisamente para olharmos aquela mão. Temos de olhá-la, temos de encarar aquele espelho da nossa história e da nossa geografia.

Golpe militar de 1964, no Brasil

A ferida é exibida, não escondida. A mão não se fecha, ela mostra. Não há dúvidas de que Oscar Niemeyer quis nos lembrar, latino-americanos, de nossas feridas não estancadas, não tratadas: a invasão europeia, a colonização, a escravidão, a miséria, o genocídio dos ameríndios, as guerras de independência (Bolívar, San Martin etc), as guerras civis (Canudos, México etc), as guerras entre Estados (Guerra do Paraguai, Guerra dos Chacos etc), a violência de Estado nas ditaduras argentina, chilena, brasileira etc e as guerras da vida cotidiana de todos nós. 

Essa história de violência tem sido velada por mãos que escondem suas palmas e olhos que não querem ver o sangue. Assim as linhas da mão não são lidas, assim os olhos não leem. Não mostramos nem falamos sobre a colonização o suficiente, nem sobre a escravidão, nem sobre os muitos genocídios perpretados, principalmente pelos espanhóis, contra os povos originários. Niemeyer nos conclama a tratar destas feridas; se sonhamos com um futuro de progresso otimista, devemos lembrar dos pesadelos do passado e do presente, dar atenção a eles e dar sentido a eles, para que não nos acompanhem mais ao longo do caminho ou, ao menos, nos acompanhem como cicatrizes: registros de uma violência que foi superada, mas que mudou nossa pele.

Oscar Niemeyer

Após ter contato com os neuróticos de guerra da Grande Guerra de 1914-18, Freud, em Além do princípio do prazer (1920), retificou sua teoria exposta em A interpretação dos sonhos (1900): há uma exceção para a regra de que todo sonho é uma realização de desejos; esta exceção está nos sonhos traumáticos (por exemplo, os sonhos dos neuróticos de guerra com a repetição da violência sem sentido do front, mesmo depois de já terem voltado para casa). Estes sonhos revelam o quanto um trauma, uma ferida psíquica, pode ser destrutivo ao psiquismo: nossa capacidade de codificar a experiência em termos de prazer/desprazer, e movimentar nossa vida através do desejo, fica imobilizada. Ao invés disso, o transbordamento de angústia causado pela experiência traumática coloca nossa mente a repetir compulsivamente a cena atroz, terrível - ora de modo passivo, ora de modo ativo, encarnando dessa vez o algoz (através da identificação com o agressor [FERENCZI, 1933]) ou simplesmente reagindo a ele. Se não elaboramos o trauma, estamos fadados a repetí-lo de um modo ou de outro.

Freud não pensa isso somente a respeito do indivíduo. Ao contrário, em obras como Totem e tabu (FREUD, 1912-13), Psicologia das massas e análise do eu (id, 1921),  "Construções  em análise" (id, 1937) e Moisés e o monoteísmo (id, 1938-39) ele nos mostra que o trauma pode muito bem ser um evento histórico-social, que, não sendo elaborado, costurado por um povo, tenderá a reproduzir-se transgeracionalmente. 

Moisés (Jusepe de RIBERA, 1638)

Como se trata o trauma do indivíduo? Na psicanálise, falando, construindo discurso, algum sentido, mesmo que desagradável, mas, ao fazê-lo, pode-se transformar o excesso afetivo e o ato em representação mnêmica, portanto, em um passado...um passado do qual não se precisa querer esquecer mais, posto que não machuca mais a condição atual do sujeito. Não devemos jamais deixar em segundo plano uma das primeiras e fundamentais descobertas de Freud: o esquecimento é um ato de defesa afetivo, o recalcamento (id, 1898); não um processo natural de apagamento da memória; é bem mais uma resistência, um não querer saber (id, 1912). Ao contrário, toda tentativa de esquecer, de não falar, leva-nos a repetir em ato aquele material, como Freud nos ensina em "Recordar, repetir e elaborar" (id, 1914).

Castigo de escravo (Jean-Baptiste DEBRET, 1834-39)

E como se trata um trauma social? De modo análogo: é também lembrando, não deixando-o ser esquecido e atuado. Temos de torná-lo passado através de narrativas que o elaborem, deem sentido e permitam-nos escolher outra coisa que não a repetição do mesmo enquanto sociedade. A essa repetição dão-se nomes como, por exemplo, racismo estrutural, subjetividade de colonizado etc. Niemeyer estava sensível a isso, ele nos mostra essa mão sangrando - tomemos o trabalho de cuidar, de tratar, de estancar a ferida que ali vemos e que nos faz lembrar quanto sangue derramado fez a América Latina ser o que ela é até hoje!

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