Ouvir a própria morte em Blackstar
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É impressionante o quanto o álbum é sombrio, triste, por vezes melancólico - a morte é escutada o tempo inteiro em cada uma de suas canções. Bowie sabia que ia morrer de câncer e fez um álbum sobre sua morte, ao mesmo tempo uma despedida, um lamento, um olhar corajoso em direção à própria finitude, um último suspiro.
Isso é raro de acontecer: alguém admitir a si mesmo que vai morrer e produzir uma excelente e verdadeira obra para compartilhar isso com os outros.
Sim, o álbum de Bowie é excelente. Em minha opinião, dentre os mais de 20 álbuns do rockeiro inglês, este é o terceiro melhor, ficando atrás apenas do clássico The rise and fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1972) e do não tão consensual Let's dance (1983).
A respeito destes três é justo utilizar o termo álbum. Nenhum dos três é uma mera compilação de canções, mas, ao contrário, é uma conjunção de canções numa certa ordem, com um certo clima, letras, arranjos com uma certa temática comum, de modo que elas dialogam entre si formando um todo estético que transmite alguma coisa...no caso de Blackstar, esta coisa é a morte do próprio artista.
A canção que abre o álbum, homônima do título dele, é também a mais longa. E a melhor. Mórbida, soturna, parece emergida de um funeral. Blackstar = a estrela preta/negra. Em entrevista antiga, Bowie já dizia ser fã da blackmusic, em especial de R&B; intencionava misturar rock experimental com a música negra. Nem sempre isso ficou evidente em sua obra, mas trabalhos como Young Americans (1976) e o citado Let's Dance são um sinal destes esforços.
Capa do álbum Blackstar (David BOWIE, 2016) |
Cena do videoclipe Blackstar (Johan RENK, 2015) |
Porém o contexto pede que entendamos Blackstar também como a morte de uma estrela, uma estrela que se apaga - algo como uma mistura de blackhole e rockstar.
Ao fim de sua vida, quando a estrela David Bowie morria, ele - um branco loiro de olhos azuis (quer dizer, com um olho azul e outro cinza), - queria ser lembrado como uma estrela negra. Do clima de funeral, no meio da música, surge uma batida black - com um quê de Motown e outro quê de hip-hop -, e é neste momento que Bowie canta "I'm a Blackstar" (sic). Para completar a proposta, em Blackstar, como em seu penúltimo álbum, The next day (BOWIE, 2013), Bowie é acompanhado por um conjunto novaiorquino de free jazz Donny McCaslin Quartet tocando rock, sendo que os músicos deste conjunto são todos...brancos como ele: assim se reduplica essa ocupação de um limiar, de um olho de cada cor, deixando sua arte preto no branco.
Vale lembrar que, onde nasceu, nos E.U.A., o próprio rock'n'roll, inicialmente, era 'música de preto'. Era a música escutada e tocada por pretos no começo dos anos 50, era um derivado do blues com influência da 'música de branco', o country. Era a música associada a artistas como Chuck Berry, Fats Domino ou Little Richard. Foi com Elvis Presley, principalmente, além de Bill Haley e outros, que o rock passou a ser também - e cada vez mais - música de branco. A passagem - ou apropriação - parece que foi consumada com a morte de Jimi Hendrix: mesmo que, de vez em quando, surja algum artista negro no rock, como Tina Turner, Tracy Chapman, Living Colour ou Ben Harper, talvez por ter os pés no country também, o rock virou música de branco. E, às vezes, acolheu mesmo brancos que flertam com o racismo: os grupos neonazistas pós modernos, como os skinheads, gostam, em geral, de rock!
Bowie, no entanto, veio de um contexto diferente. Quando garoto, quando ainda era David Jones, o primeiro instrumento que aprendeu foi o saxofone, bastante associado ao jazz e ao soul. Além disso, o rock estourava na sua Inglaterra com três bandas de brancos ingleses que eram apaixonados pela música de preto estadunidense: os Beatles, os Rolling Stones e os Animals, se adoravam Elvis e Buddy Holly, mostravam também sua paixão pelo blues, por Ray Charles, pelo R&B, pelos rockeiros pretos. O modo de cantar e tocar destas bandas inglesas era evidentemente inspirado nos pretos americanos e isso fica ainda mais evidente na escolha do repertório - as três bandas regravaram diversas canções de pretos americanos, do rock ou do blues ou do R&B -, sendo que Rolling Stones e Animals surgiram como bandas exclusivamente de blues.
Numa entrevista mais recente, Keith Richards - guitarrista e compositor dos Rolling Stones - se queixava que o rock'n'roll, com o passar do tempo, ficou muito rock e pouco roll (RICHARDS, 2012). O roll seria o que também se enuncia por swing dos negros. Bowie é herdeiro desta tentativa de manter o rock e o roll em sua música, mesmo que sempre odd, esquisita, vanguardista, experimental.
Mas Bowie não era somente um artista musical, era também um performer. Voltemos, então, a Blackstar, sua última versão de rock misturado ao roll, desta vez com um clima encenado de funeral. Bowie gravou um clip para a canção Blackstar que completa o clima fúnebre e deixa tudo o que até agora indiquei sobre sua morte (na vida e na música) ainda mais explícito: nele vemos um astronauta morto que alude seja a seu personagem Major Tom, introduzido em seu primeiro sucesso, Space Oddity de 1968 (e reaparecido em Ashes to ashes de 1981), seja ao próprio E.T. do rock, Ziggy Stardust, outro de seus memoráveis personagens, seja ao personagem que interpreta no filme O homem que caiu na Terra (ROEG, 1976). Morreram...e ele também.
Não se trata só da morte do artista - Bowie quis dar um fim à sua obra também.
Nas outras canções do álbum as referências à morte continuam. Cito dois exemplos: Lazarus, como sabemos, foi quem levantou do mundo dos mortos e I can't give everything away, última faixa, despedida de Bowie, parece um lamento: eu não posso dar tudo / eu não posso largar tudo.
Este esforço de Bowie deve ser celebrado: uma vida na arte; os últimos momentos de sua vida voltados para a produção de uma obra sobre os últimos momentos de sua vida, lembrando a formulação de Michel Foucault, em "A linguagem ao infinito" (1963), sobre o modo como o homem moderno lida com a linguagem - ele escreve, fala, canta, para não morrer; diante dele está a morte, seu silêncio já é morte - silêncio que ele não quer ouvir.
Cena do videoclipe de Blackstar (Johan RENK, 2015) |
Uma vez mencionado Michel Foucault, aproveito e lembro que foi este filósofo quem, nos últimos anos de sua vida, escreveu sobre a estética da existência como algo que pode permitir alguma liberdade ao sujeito; sobre a tomada da própria vida - incluída nela a morte - como uma obra de arte (FOUCAULT, 1982-83, 1983-84). Blackstar não seria o corolário de que Bowie foi um esteta da própria existência?
Freud, em "Reflexões sobre os tempos de guerra e morte" (1915), na parte do ensaio dedicada à morte ('Nossa atitude para com a morte'), discute justamente a dificuldade do homem moderno em encarar de frente o fato de que vai morrer. Estamos sempre nos esquivando deste pensamento e cultivando a fantasia de viver para sempre. Para o inventor da psicanálise, esse fenômeno deve ser entendido à luz do conceito de narcisismo.
Narcisismo, em psicanálise, é a chave para se entender a formação de nosso eu: esta instância psíquica - não idêntica a tudo que é psíquico, mas que só reconhece a si mesma como psíquica - é moldada a partir do amor voltado para si mesmo tomado como objeto unitário. Como acontece com qualquer objeto de amor, temos uma enorme dificuldade em aceitar perdê-lo, de modo que fazemos de tudo - inclusive evitar pensamentos - para negar a morte. Mas o eu não é um objeto de amor qualquer; em geral é nosso mais precioso objeto de amor, de modo que fazemos o possível para continuar a amá-lo, continuar a vê-lo como um objeto unitário e imutável.
Tendo em vista, como propõe Joel Birman, que nossa cultura contemporâea, é marcada - em comparação com o início do século XX - por uma acerbação do narcisismo, Blackstar é realmente louvável, uma intervenção analítica em nossa cultura do narcisismo, como já a chamava Christopher Lasch (BIRMAN, 2001; LASCH, 1979).
Michel Foucault |
Como seria possível o eu olhar para a própria morte e representá-la, então? Foi o que Bowie fez, não é? Aparentemente, para que isso possa ser realizado é necessário um trabalho sobre si, no qual:
1) teria de reconhecer que não vale tanto assim. Conhecemos isso, em psicanálise: é o efeito do supereu sobre o eu (FREUD, 1923). O juízo, a crítica e a vigilância do supereu sobre o eu efetuam uma desvalia do eu em comparação com figuras ideais, com as quais o eu jamais está à altura.
2) Porém, apenas o ataque do supereu seria insuficiente para compreendermos o gesto de Bowie, afinal todos temos supereus atacando o eu e poucos fazem arte com isso. Um passo seguinte tem de ser suposto. E talvez um texto de Freud como "O humor" (id, 1926) possa nos ajudar: ali - e somente ali - saiu da pena do inventor da psicanálise a hipótese de que pode haver subjetividades ou situações em que o supereu tenha uma atitude menos sádica e mais benevolente para com o eu; é o que ocorre na cena de humor na qual um sujeito que vai à forca comenta, ao olhar o céu, que fará um lindo dia. Freud entende esta situação como, ao mesmo tempo, um reconhecimento da finitude, do absoluto desamparo diante da situação, mas, ao mesmo tempo, uma vitória do sujeito diante das imposições da realidade; algo como "Vocês não me venceram! Vejam, ainda posso rir disso tudo; meu corpo morrerá, mas não me dobrarei enquanto sujeito!".
Seria possível condiderar o ato final de Bowie como um análogo do condenado à forca da anedota contada por Freud? Se sim, abriria-se, assim, a possibilidade de que, por trás das bandagens que usa no videoclipe, Bowie esteja dando uma piscadela do olho cinza para nós.
E abre-se, ainda, a possibilidade de retomar um enunciado freudiano para uma reinterpretação. Me refiro à sua defesa, em Além do princípio do prazer (id, 1920), de que devemos morrer por nossos próprios meios. Jacqueline Rose, em seu trabalho justamente intitulado "To die one's own death" (ROSE, 2020), entende esta frase como aquilo que Freud formulou como o caminho possível para se experimentar a própria destruição e morte de modo menos traumático. Se o trauma está relacionado ao susto e à falta de preparo simbólico e subjetivo para lidar com uma experiência, então doenças, acidentes ou violências sofridas que levam o sujeito a significá-las como uma interrupção no seu processo de viver-morrer, por encurtarem brutalmente o seu caminho para a morte, seriam traumáticas. Por outro lado, a elaboração de um modo de lidar com a própria morte, estetizá-la, transformá-la num processo de despedida e último momento de uma vida que se consuma, como algo com um sentido que se realiza, então estaríamos falando tanto da morte de Freud como a de Bowie como ocorridas pelos meios do próprio sujeito, assim como ocorre quando uma estrela se torna um buraco negro - isso se dá por um processo desencadeado por ela mesma, um trabalho de luto do mundo e de si. Essa morte não seria traumática...ou ao menos seria menos dolorosa - inclusive para nós, fãs de Bowie.
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Jacqueline Rose |
Vou ouvir com outros ouvidos agora, Pedro...
ResponderExcluirE lembrei do último álbum do Leonard Cohen
ResponderExcluirEste não ouvi. Vou procurá-lo.
ResponderExcluirUm texto maravilhoso, cheio de ressonâncias com o meu próprio luto no luto do João José.. um poeta que escreveu uma Poesia Negra, como as pinturas negras, de fato um ofertório da própria morte. Você atinge o cerne da coisa em vários momentos, sem medo da morte, ao contrário, compartilha esteticamente aquilo que Blanchot nomeou de "a grande recusa" dos pós- modernos, em Conversa Infinita.
ResponderExcluirSintonia afinada, com muitas ressonâncias e direito a fermentaçoes do pensamento, hoje ouvi um CD do David Bowie, que era do João, primeira música a tocar nesta casa depois do grande acontecimento. Obrigada pelo texto lindo e pela delicadeza da amizade. Vi sim, ele se tornar mestre em sua própria embarcaçao para poder viver seu périplo final. Nao lutei mais, só acompanhei..e isso foi tudo. Meus sentimentos pela perda de seu grande amigo Júlio!
Glaucia, você sabe bem que minha última publicação foi também para você e para João José. Um beijo e um abraço!
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