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Hoje o assunto são os jardins franceses. Ou melhor: o que os jardins franceses têm a ver com o modo como nos relacionamos conosco no ocidente...ao menos desde o século XVII.
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Jardins de Vaux-le-Vicomte (André LENÔTRE, 1657)
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Os jardins franceses que surgiram naquele século são marcados pela simetria, proporção, perspectiva e organização racional do espaço. A natureza - as plantas, águas, pedras, terra - é investida pelo nascente homem moderno como objeto de seu domínio; aqueles jardins eram a materialização do sonho moderno: tornar a natureza racionalizada e dominada, dobrada à vontade do homem. São diferentes dos jardins renascentistas italianos, nos quais, mesmo já havendo um gosto pela racionalidade, o todo era marcado pela experiência de uma idealização da alegria, havia um certo culto à efusão afetiva; são diferentes também dos posteriores jardins ingleses, românticos, que queriam imitar uma experiência de natureza selvagem (GOMBRICH, 1950).
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Retrato de René Descartes (Frans HALS, 1649) |
Os jardins franceses, ao contrário, são marcados por um rigor...o adjetivo que me vem não poderia ser outro - cartesiano! Rigor cartesiano. O filósofo René Descartes é contemporâneo do surgimento e da moda desses jardins entre a nobreza francesa. Descartes, através de seu método baseado na dúvida em busca da certeza, acreditou tê-la encontrado justamente na certeza da própria dúvida em si, da dúvida como pensamento, o que ocasionou sua defesa do próprio pensamento como garantia prínceps de alguma existência e, ao mesmo tempo, ponto de partida seguro de onde seria possível dominar as incertezas e ilusões (DESCARTES, 1637).
Sua operação igualou o sujeito ao próprio pensamento e tomou todo o resto, como res extensa: corpo e natureza, passam a ser o objeto sobre o qual o sujeito que pensa, que duvida, que se identifica à própria razão, incidirá tentando dominar através de seu método. Algo da ordem da liberdade se expressa nesse método; liberdade do pensamento, que busca segurança na sua capacidade de duvidar e não na prisão da tradição e do preconceito; por isso mesmo o método cartesiano está intimamente relacionado ao então nascente método científico. Mas, por outro lado, há algo de aprisionador na equação sujeito = pensamento racional: ao menos do ponto de vista de um homem dos séculos XX e XXI, ainda mais para um psicanalista, para quem o sujeito está exatamente onde escapa o domínio da razão consciente (FREUD, 1900; LACAN, 1960).
Retornemos ao metodo cartesiano. Eis a separação moderna de corpo e mente, exaltando a segunda como fundamentalmente racional e indicando, como um imperativo categórico, que ela deve dominar o corpo animal do homem e a natureza como um todo. Descartes é o filósofo fundador do projeto de modernidade que se tornou ainda mais explícito no Iluminismo do século XVIII e no qual, a rigor, ainda estamos inseridos. Retomando o tema dos jardins franceses, esses jardins, indubitavelmente, espelham o projeto cartesiano: um e outro formam um par coerente. Tais jardins surgiram poucas décadas depois de Descartes tornar seu método público, já no período do Rei Sol, Luís XIV - e, sem dúvida, também espelham o sonho autoritário do absolutista, que queria que todos os franceses e toda a natureza se curvasse e se submetesse à sua vontade, à sua dominação, que utilizava do racionalismo, outrora pensado por Descartes como somente libertador, desta vez como método de governo e controle dos outros e das coisas não pelo sujeito racional, mas pelo soberano e sua razão de Estado.
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Jardins de Versalhes (André LENÔTRE, 1661)
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André LeNôtre foi o maior paisagista de jardins franceses, a ponto de ter feito o maior e melhor exemplo entre todos, os jardins do Palácio de Versalhes, sob demanda do monarca, do próprio Rei Sol. Seus jardins precisam ser contextualizados no tempo: foram criados em tempos de sociedade de côrte; época em que a nobreza só mantinha algum poder enquanto orbitava em torno do Rei. Bajuladores, aduladores, dependentes, conselheiros, financiadores: os interesses e modos de relação com o Rei variavam, mas o poder vinha somente dele e quem era agraciado pelo soberano obtinha um pouco de poder também; o objetivo era sempre orbitar o mais próximo possível do monarca. Os passeios por estes jardins de palácios eram um dos cenários para estes satélites reais se apresentarem.
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André LeNôtre (Carlo MARATTA, 1679-81)
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Trago essse assunto pois o brilhante sociólogo Norbert Elias, em seu excelente
A sociedade de côrte (1969), nos mostra que a vida em côrte era absolutamente regrada; para cada atividade havia uma etiqueta específica, protocolos, cerimônias - tudo funcionava de modo a eliminar a
espontaneidade. Todo comportamento deveria ser racionalizado, dominado pela vontade
consciente e refletida; afinal, era preciso SEMPRE agradar ao Rei, era preciso SEMPRE ser um diplomata nas relações entre pares para escapar das intrigas na disputa feroz da côrte pela confiança do soberano. Percebe-se como o racionalismo cartesiano se espraiava pela côrte, dominando condutas e jardins...e assim - e não necessariamente da leitura de Descartes, mas em
ato - teria se formado sujeito moderno entre a nobreza: um indivíduo que se destaca dos outros, da natureza e de si mesmo como força racional, que visa dominar cada
resistência à razão.
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Norbert Elias
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Mas Elias também nos lembra que nos jardins franceses sempre houve recantos, labirintos, muros de cedrinhos, um caramanchão aqui, um recuo acolá. Nestes espaços ultra-racionalizados, havia esconderijos, lugares para a expressão secreta da espontaneidade, dos sentimentos aflorarem à pele. Um beijo roubado, um tapa na cara, a leitura de uma carta de amor. O sociólogo entende que, ao mesmo tempo em que a razão fazia sua casa na sociedade e no
eu, também se desenvolvia uma cultura da intimidade. Os sentimentos e a descontração eram agora experiências íntimas, internalizadas, que encontravam poucos espaços e momentos para expressão.
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Labirinto em um Jardim Francês
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Ora, o eu moderno é, portanto, ao mesmo tempo, um esforço para a razão dominar o corpo e os
afetos e um modo de viver os sentimentos e
fantasias como segredos íntimos, às vezes tão íntimos que não bastaria escondê-los dos
outros, mas também seria preciso escondê-los de si mesmo - eis o que Freud chamou de
recalcamento (FREUD, 1915). Mas, desconsideremos o material forçado ao recalcamento e ainda teremos um eu que não é só racional, mas também afetivo, um eu
erotizado, já dizia Freud em "Sobre o narcisismo: uma introdução" (id, 1914). Somos assim até hoje.
Não por acaso, quando Freud primeiro esboçou a mente humana, ao descrever nosso pensamento consciente, entendeu que há uma pressão em cada um de nós para que este tipo de pensamento seja racional, que domine as contradições, que seja coerente, inteligente, preciso e claro. E também não é por acaso que o mesmo Freud não se satisfez com esta orientação inicial de seu modelo. Era preciso reconhecer na subjetividade moderna também o outro aspecto do eu: ele guarda sentimentos e fantasias em sua intimidade, mas não só guarda - ele, de fato os cultiva; e foi por isso que Freud deu enorme importância à relação afetiva de amor, de culto a si mesmo, que nós - modernos - todos aprendemos a ter com nossa própria pessoa. A isto Freud chamou de
narcisismo, o fundamento, do ponto de vista
psicanalítico, de nosso próprio eu, e não a razão, como queria Descartes.
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O balanço (Jean-Honoré FRAGONARD, 1767-68) |
E quanto às fantasias íntimas que vimos serem cultivadas no jardim e no eu moderno? Não eram um segredo tão escondido assim. Elas se tornaram um tema abundante da pintura rococó, de Antoine Watteau a Jean-Honoré Fragonard, por exemplo. Freud sabia delas também, é óbvio: não se falava de outra coisa mais de um século depois, no recanto do divã, na revelação da vida íntima de seus pacientes em análise, que fazia o psicanalista se aproximar do material inconsciente causador dos sofrimentos psíquicos de todos nós modernos e ajudá-los a se tratar.
Freud as julgou como o objeto sobre o qual todo o processo civilizatório moderno em torno do recalcamento incide. Elas são localizadas, por isso mesmo, pelo psicanalista, nas fronteiras entre nosso eu e nosso inconsciente: são um ponto de passagem de um para outro, como ele escreve em "O Inconsciente" (1915).
Dito tudo isso, acho que ajudei um pouquinho o leitor a deixar de tomar a descrição psicanalítica da mente humana como uma natureza revelada e dominada (tal como no projeto moderno de jardinagem francesa) e bem mais como um processo histórico de moldagem do modo como somos sujeitos (ou assujeitados). Lacan já sinalizava que o sujeito psicanalítico é o mesmo da ciência moderna, no sentido de que ele surge com o acontecimento da ciência na modernidade (LACAN, 1965): e Descartes é um protagonista deste acontecimento.
Muito bom! 👏
ResponderExcluirObrigado
ExcluirAdorei! :)
ResponderExcluirQue bom! Então volte mais vezes! Sinta-se em casa!
ResponderExcluirMuito interessante Pedro! 👏👏 obrigada!
ResponderExcluirObrigado! Até a próxima!
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