Máximas e reflexões e seu caleidoscópio de associações

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Hoje me dedico um pouco a falar com vocês do ótimo livro Máximas e reflexões (1893), coleção de pequenas elaborações do poeta, dramaturgo, filósofo, botânico e mineralogista, o genial Johann Wolfgang von Goethe, produzidas ao longo de toda sua vida e obra: aliás, vida e obra, no caso de Goethe, não são tão dissociadas assim.

Máximas e reflexões é uma boa amostragem dos interesses e talentos múltiplos do maior nome da literatura alemã. Definir do que trata esta obra já é um desafio. Ali se encontram temas como o método científico, o papel do gênio na arte, reflexões filosóficas sobre a natureza, opiniões sobre a obra de Shakespeare, provérbios, estudos sobre os cristais, discussões sobre ética etc.
Capa do livro Máximas e reflexões (GOETHE, 1893, póstuma), edição da Forense Universitária

Goethe acumulou estas notas ao longo de toda sua vida, dos anos 70 do século XVIII até sua morte, nos anos 30 do século XIX, e as reuniu num livro que veio à luz como obra póstuma. Mesmo que o livro esteja dividido em sessões temáticas como, por exemplo, 'Deus e Natureza', 'Conhecimento e Ciência' ou 'Arte e Artistas', de fato o que se descobre ao se ler cada uma destas sessões é um verdadeiro caleidoscópio que se torna exponencialmente multicolor quando consideramos todas as sessões, pois, cada uma delas se estrutura como uma coletânea de máximas, reflexões, notas, palavras soltas, pequenos poemas - todos em formato de aforismo - que, por vezes, demonstram pertinência absoluta ao tema da sessão, por vezes, tocam lateralmente no tema, por vezes parecem se relacionar menos com aquele tema do que com os de outras sessões, numa estrutura que lembra, desta maneira, a das sinfonias de seu contemporâneo e conterrâneo - e não menos genial - Ludwig van Beethoven (que, no entanto, migrou do classicismo para o romantismo, criado pelo próprio Goethe, que, ao final da vida, o renegou em prol de um novo classicismo). Também, na escrita de Beethoven operam pequenas frases, que aparecem aqui e acolá, às  vezes se repetindo insistentemente, às vezes alternando-se com outras frases, que também se repetem, às vezes com revisitações e versões  diferenciais do antes já dito, às vezes como um solilóquio no meio de um outro contexto, às  vezes como a emergência de um novo tema, indicando relações tanto com o contexto do movimento, quanto com o contexto da sinfonia, quanto com as outras obras do mesmo compositor (os melhores exemplos são, talvez, a Quinta [BEETHOVEN, 1808], a Sétima [id, 1812] e a Nona sinfonias [id], 1824).
J. W. Goethe

O fraseado de Beethoven, na medida mesma em que é musical, não  tem significação clara, mas, por sua insistência, tem o efeito de uma máxima, de um ditado, de um aforismo que se impõe. A cultura literária alemã, no entanto, não precisou de Beethoven para dar um destaque ao aforismo que não se viu em outro lugar (mais provável é que Beethoven tenha sido influenciado por ela). Goethe teve contemporâneos - George Christoph Lichtenberg (Aforisms & Letters [1777-99]), por exemplo -, mas ele mesmo é tanto um baluarte da cultura alemã quanto desta arte em particular: a aforística.

Em Máximas e reflexões, o formato de aforismos nem sempre evidentemente interligados provoca no leitor um efeito estético interessante: cabe a ele o trabalho de tentar relacioná-los num todo coerente, ou simplesmente assumir que não há coerência em certas partes. Nem por isso aquela ordenação oferecida pelo texto deixa de martelar na mente de cada um de nós, nos seduzindo ao trabalho de elaborar aquele material; o livro é um convite ao pensar, à interpretação, à asssociação livre (que jamais é inteiramente livre [FREUD, 1900]) pelo seu próprio formato estético de aforismos; modelo repetido por aquele filósofo que elogiou bem poucos em seus escritos, mas Goethe foi não só um desses poucos, mas talvez o mais elogiado. Me refiro a Friedrich Nietzsche - que discorre belas linhas elogiando o poeta pensador em seu O anticristo (NIETZSCHE,  1888/95) -, que utiliza do mesmo formato de obra, por exemplo, em seus Humano, demasiado humano (id,1878) e A gaia ciência (id, 1882).
Friedrich Nietzsche

Outro para quem a obra de Goethe - inclusive Máximas e reflexões - foi fundamental em sua formação (e é digno de nota que o poeta tenha sido o autor mais citado por ele também), é Sigmund Freud. Diversos assuntos tratados neste livro de aforismos de Goethe parecem ter inspirado o pensamento do criador do campo psicanalítico, mas sabemos, com certeza, que suas passagens dedicadas à filosofia da natureza convenceram Freud a se tornar um cientista, um pesquisador de uma natureza que não é redutível a um objeto de manipulação cartesiana, mas um mistério goetheano-romântico (o objeto da psicanálise não é exatamente natural - o inconsciente -, mas certamente é abordado por Freud mais como um mistério a ser explorado numa aventura do que uma coisa a ser compreendida e usada), como se pode ler na biografia do psicanalista assinada por Ernest Jones (JONES, 1961). Isto já bastaria para dar a este livro a importância de berçário intelectual de Freud, mas cito outros três exemplos, dentre vários, de como o texto de Goethe atravessa Freud de cabo a rabo:

 a) o aforismo 1038:
 "Tenho pena dos homens que fazem muito caso da perecibilidade das coisas e se perdem em iniquidades terrenas. Nós estamos em verdade aí justamente para tornar imperecível o que perece; isto só pode efetivamente acontecer se se sabe valorizar as duas coisas" (GOETHE, o.p. 1893, p. 161). 
Poderia muito bem servir de resumo do bonito artigo de Freud "Sobre a transitoriedade" (1916), que em algum momento prometo comentar neste blog. Valorizar as duas coisas, o perecível e o imperecível, é o próprio viver, para Freud, em O eu e o isso (id, 1923), sustentado na fusão das pulsões de vida com as de morte. A desfusão das pulsões indica, por outro lado, graves psicopatologias, nas quais ou o sujeito está tomado pela cultura da pulsão de morte, deserotizado, capturado pela perecibilidade de si e das coisas - numa palavra, melancólico -, ou expulsa a pulsão de morte como pulsão de destruição do outro, se tornando extremamente aversivo ao que é diferente do eu, extremamente erotizado - o que configura a dinâmica imaginária da paranóia (FREUD, 1914; LACAN, 1948).
Vanitas (Pieter CLAESZOON, 1625)

b) o aforismo 21: 

"Propriedades fundamentais da unidade viva: cindir-se, unificar-se, expandir-se até o universal, perseverar no singular, transformar-se, especificar-se; e como o vivente pode se tornar manifesto sob mil condições, ele pode aparecer e desaparecer, solidificar e derreter, cristalizar e fluir, estender-se e contrair-se. E porque todos estes efeitos se dão no mesmo momento do tempo, todas as coisas em geral e cada uma delas em particular podem entrar em cena ao mesmo tempo. Surgir e perecer, criar e aniquilar, nascimento e morte, alegria e tristeza: todos atuam uns por meio dos outros, no mesmo sentido e na mesma medida. Assim, mesmo a coisa mais particular que possa acontecer sempre aparece como imagem e alegoria da mais universal" (GOETHE, o.p. 1893, p. 4)

Parece que a teoria freudiana de pulsões de vida e de morte como estando presentes em cada célula viva através de fusões e desfusões, teoria desenvolvida em Além do princípio do prazer (FREUD, 1920) e que incomoda bastante os psicanalistas dos anos 1950 para cá, influenciados pela divisão lévi-straussiana de natureza e cultura (LÉVI-STRAUSS, 1958), por conta de seu teor que agora soa um tanto fantástico, floresceu a partir daquelas linhas, bem como a ideia de ambivalência (também articulada à teoria das pulsões,  em "As pulsões e seus destinos" [FREUD, 1915]), essa sim aceita de modo inconteste entre psicanalistas. 

Desde Goethe, esteve reiteradamente presente, até os anos 1940, no pensamento de língua alemã um quinhão de base romântica que orienta pensar a cultura como um ramo da natureza e não como um Outro da natureza - esta ideia, de um modo ou outro, está presente também em Schopenhauer (1818), Nietzsche (1900), Freud (1920), nos gestaltistas (KÖHLER, 1929; KOFFKA, 1935),  na psicossomática (GRODDECK, 1923) e no nazismo (HITLER, 1925), e foi porque este último se tornou possível através de uma concepção de raça amalgamada a de cultura que tal ideia passou a ser percebida como também bastante perigosa. 

A natureza romântica não é a natureza de Galileu (1632), Descartes (1637) e Newton (1713) - uma natureza repetitiva, movida por leis regulares -, mas sim a natureza do mistério da substância viva, da diferenciação contínua, da impossível reprodutibilidade perfeita: por isso mesmo, não é possível, com este ponto de vista, diferenciar cultura de natureza através da oposição variabilidade contra regularidade (GUSDORF, 1982). Um romântico - e o próprio Goethe o diz - poderia dizer o contrário: é a cultura que impõe regularidades à infinita variabilidade da natureza! Não se trata de uma má ideia, tendo em vista nossos tempos, agora às vezes chamados de antropoceno exatamente porque não é mais possível pensar na natureza do planeta sem o humano (CRUTZEN, 2000). Toda a ciência da ecologia se desenvolveu por esta via.

Mas o perigo da eugenia, parente consanguínea do nazismo, está, ao mesmo tempo, sempre presente, quando nossa observação se debruça sobre todo o desenvolvimento da engenharia genética, do controle da subjetividade através de substâncias químicas, das estratégias de propaganda através de imagens que capturam a atenção do animal humano. Remeto os leitores, se quiserem se aprofundar nesta discussão, ao livro organizado pelos psicanalistas e colegas do EBEP-RJ Joel Birman, Isabel Fortes e Simone Perelson, Um novo lance de dados - psicanálise e medicina na contemporaneidade (2011).

c) o aforismo 94:

 "Nós todos vivemos do que passou e perecemos por conta do que passou" (id., ibid, o.p. 1893, p. 16). 

Já este parece resumir toda a concepção freudiana da constituição do psiquismo como moldado na experiência histórica (seja ela filo ou ontogenética) e sofrente dos acontecimentos e peripécias desta história pois é ela própria o que dá sentido aos sintomas e à neurose de cada um de nós. O trabalho de uma análise, não por acaso, é comparado, por Freud, daquele executado pelo arqueólogo (FREUD, 1937). Ele escava em busca de trazer à luz os restos de uma história, as fixações que tornaram um caráter ou um tipo de escolha de objeto sexual ou, ainda, uma inibição a forma que o sujeito em análise apresenta como enigma. Para que seja possível compreendermos os fundamentos do que se estruturou na atualidade, será preciso trazer certas reminiscências do inconsciente para o consciente (FREUD & BREUER, 1895).


Mas como já comentei, o formato geral do livro, montado unicamente de aforismos em série, cujos efeitos são caleidoscópicos, é que me parece chamar mais atenção como um ótimo estímulo para quem se interessa pela psicanálise. O texto em fragmentos nos põe a trabalhar para preencher as lacunas entre eles tal qual paciente e analista abordam o discurso do neurótico, lacunar, fragmentado, que se dá em saltos de um tema para outro, de assuntos considerados relevantes para outros tomados como vulgares ou mesquinhos, de generalizações a impressões de um único exemplo empírico, de lembranças a fantasias. É com a atenção uniformemente suspensa (também chamada de atenção flutuante), e, assim, atenta a tudo isso - e não  só ao conteúdo que o sujeito dá, conscientemente, importância -, que se pratica a escuta do psicanalista quanto a do próprio sujeito em análise en relação a seu próprio discurso (FREUD, 1912). Ou seja, trata-se de uma boa maneira de vermos trabalhar em nós, leitores, o método psicanalítico e a interpretação que se constrói a partir dele, mesmo tudo isso tendo sido criado antes de a psicanálise existir. 

Dentre as polêmicas de Goethe com o método científico newtoniano, chamo atenção para sua tentativa de lhe opor uma outra teoria da ótica, da luz e da cor. Goethe se incomodou, aparentemente, com uma teoria científica da ótica que foraclui o sujeito (NEWTON, 1672; GOETHE, 1810; LACAN, 1965), ou seja, não consegue admitir uma teoria da percepção da luz e das cores na qual o sujeito não participa, na qual ele é apenas um olho passivo às leis da física, na qual ele não escolha o que vê, como vê e como valora o que vê. 

O efeito de decomposição da luz branca no espectro de sete cores a partir do prisma pareceu servir, ao longo do tempo, de prova em favor de Newton. Exceto os daltônicos, todos veem o mesmo efeito, as mesmas cores ordenadas igualmente. Não só Newton parece ter vencido Goethe, como ainda fez a luz branca se impor como a unidade de todo o espectro numa única ordem. Mas, em termos de estética artística e psicológica e ainda mais no que toca o tema da forma literária, a tendência caleidoscópica goethiana - na qual não há submissão da variabilidade ao um - venceu, ao menos se cobsiderarmos o legado que Máximas e reflexões deixou. 

Ora os fragmentos de cores do caleidoscópio nos chamam a atenção por formarem padrões, uma estrutura antes não percebida, ora apontam para uma diferença evidente entre eles, ora se reconfiguram em novas estruturas, ora se arranjam levando a desenhos antes não vistos e assimétricos...é assim também o livro de Goethe, é assim também o trabalho de análise.

Capa do álbum do Pink Floyd The dar side of the moon (HIPGNOSIS [THORGERSON & POWELL], 1973)


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