O homem duplicado e a angústia

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O filme O homem duplicado (2013), do diretor canadense Denis Villeneuve, é o ponto de partida da conversa de hoje.
Cartaz do filme O homem duplicado (Denis VILLENEUVE, 2013)

Este intrigante filme nos remete a um tema razoavelmente reincidente no campo da literatura moderna: o duplo. Para ficarmos apenas com os grandes, Shakespeare já o abordou em A comédia dos erros (1594), Edgar Allan Poe em William Wilson (1839), Dostoiévski em O duplo (1846) e José Saramago em...O homem duplicado (2002) - sim, o filme de Villeneuve é, ele mesmo, um duplo do livro de Saramago, semelhante mas com diferenças inquietantes.
José Saramago
 
O tema do duplo reiteradamente nos remete à situação angustiante e angustiada em que um personagem descobre um outro indivíduo idêntico a ele próprio. É esta a trama do filme de Villeneuve, o qual conta a história de um professor universitário, Adam Bell, interpretado pelo ótimo Jake Gyllenhaal, que descobre um ator de cinema idêntico a ele mesmo. Não pretendo publicar spoilers do filme aqui; apenas adianto que esta descoberta leva ambos personagens e suas respectivas mulheres a experiências profundamentes angustiantes - tudo incrementado por toques de surrealismo aflitivo, que remetem à estética do fantástico e do pesadelo, própria da assinatura de um outro cineasta importante: David Lynch. Pelo que parece, Villeneuve deve nutrir uma grande admiração pela obra e estética de Lynch, uma vez que acaba de lançar nos cinemas sua releitura de Duna (LYNCH, 1985; VILLENEUVE, 2021), previamente dirigido e lançado pelo diretor estadunidense nos anos 80 - que, aliás, também é um duplo do livro homônimo de Frank Herbert (HERBERT, 1965), o qual, por sua vez, não chega a ser um duplo, mas é inquietantemente parecido com o filme Lawrence da Arábia (LEAN, 1962), que supostamente é um espelho fidedigno da história real de T. E. Lawrence, ou ao menos da sua narrativa registrada em Os sete pilares da sabedoria (LAWRENCE, 1922).

Percebe-se aqui que poderíamos continuar a buscar similitudes em obras ou vidas mais antigas. O tema do duplo é espinhoso porque a igualdade ou a semelhança entre coisas percebidas dizem respeito, antes de tudo, a miragens imaginárias das quais nenhum de nós está inteiramente livre, posto que o próprio eu é um outro (LACAN, 1953-54). Pretendo explicar isso mais abaixo.
David Lynch

Voltemos à estética de pesadelo lyncheana e, mais especificamente, ao tema do duplo abordado em O homem duplicado. Esta obra nos deixa um enigma: por que se sentiria angústia diante do duplo? É impossível para um psicanalista não remeter esta discussão ao célebre ensaio de Sigmund Freud que, nas obras completas traduzidas do inglês e publicadas pela editora Imago, é nomeado "O estranho" (1919). Ali Freud busca mostrar ao leitor que essa experiência estética que nos remete à sensação de estranheza, ao sinistro, àquilo que em inglês se chamou de Uncanny e, finalmente, àquilo que é o título mesmo do texto alemão, o Unheimliche, se trata de um fenômeno que muito interessa ao psicanalista.
A reprodução proibida (René MAGRITTE, 1937)

Resumidamente, Freud defende a tese de que a experiência do estranho, do Unheimlich, poderia ser definida, ao mesmo tempo, como a do que é muito diferente e a do que é intimamente familiar, aparentemente de modo paradoxal. O que resultaria seja do que é estranhamente familiar quando deveria ser diferente (como andar a esmo numa cidade que não se conhece e sempre retornar, sem se dar conta, ao mesmo endereço) quanto do que é estranhamente diferente, quando deveria ser familiar (como quando tomamos um susto ao ver nossa própria face diante de nós, para em seguida percebermos se tratar somente de um espelho). 

O efeito estético da estranheza, na pena de Freud, diria respeito a algo muito familiar, já sabido, porém inconsciente (ou seja, o retorno do que foi recalcado) e, por isso mesmo, causador de desconforto e angústia quando acessado ou mesmo quando se aproxima da mente consciente. Ou seja, se há uma estética da experiência do inconsciente, ela é a estética do estranho. Quando sentimos algo estranho, esquisito, isso seria indicativo de que algo do inconsciente está em cena (seja nas cenas da ficção, seja nas cenas da vida - que portam também sua parcela de ficção [como as lembranças encobridoras demonstram {id, 1899}). E, como exemplo desta experiência do estranho-familiar inconsciente, Freud nos lembra exatamente do fenômeno do duplo já mencionado acima na cena do estranhamento diante do espelho, nem que ele ocorra por um breve instante que às vezes vivemos quando, após um breve instante - 'Aquele outro sou eu mesmo como sujeito!' Esse breve desacerto nos provoca a sensação, às vezes angustiante, às vezes cômica, do estranho. Ela foi explorada na literatura, como um discípulo de Freud, Otto Rank bem mostrou (RANK, 1932) e como já indiquei em alguns exemplos acima - e esse é o caso do próprio O homem duplicado

Outro importante psicanalista, Jacques Lacan, retomou a discussão a respeito do duplo e da angústia e, de sua relação com o inconsciente, ao se debruçar sobre a origem do nosso próprio eu. O principal texto de referência aqui é mesmo o famoso "O estádio do espelho como formador da função do eu" (1949). Já desde Freud se sabe que o eu não existe desde o nascimento, ele é construído em nossa vida. Lacan desenvolve esta ideia argumentando que esta construção se dá a partir da identificação que cada um de nós estabelece entre nós mesmos e a imagem que o Outro nos oferece, com que o Outro nos identifica, que ele deseja em nós. Nosso eu é, nas palavras de Lacan, por isso, um outro; ele é estabelecido de forma imaginária a partir de uma imagem que o Outro nos indica ser a nossa, sua estrutura é a de um espelho que reflete uma imagem externa, se alienando nela e a amando como se ela fosse ele próprio. Mas se esta imagem com que nos identificamos, por um momento mesmo que fugaz, não seja mais vista como idêntica a nós mesmos, mas defina outro sujeito, nós não sabemos mais quem somos, passamos a temer nossa inexistência, o desaparecimento de nossa própria imagem - a angústia toma corpo: lembremos que, desde Freud, o eu é pensado como a imagem, a superfície corporal (FREUD, 1923). Aqui talvez valha a pena dar um exemplo didático com a finalidade de tornar o argumento mais compreensível: se meu rosto muda - e os adolescentes sabem muito bem disso - experimento uma angustiante estranheza em relação a quem sou eu, afinal eu sou aquela imagem com que me identificava ou essa outra que toma corpo?

Saiamos do exemplo didático e voltemos para as questões mais complexas. É quando algo de nós não se coaduna à imagem de nosso eu ou quando a imagem de nosso eu parecer não nos identificar como sujeitos, mas como coisas, objetos que perderam a animação, e isso fazer aparecer, ligado àquela imagem, um outro sujeito...quando ocorrer este desconcerto, a angústia e a experiência de estranheza diante da imagem de si como um duplo ocorrerá em decorrência. Sou eu, mas não sou eu. Parece comigo, mas as diferenças indicam um outro sujeito. Eu não sei mais quem sou, esta experiência beira a sensação de morte subjetiva

Porém, o sujeito que não é idêntico ao eu - esse não seria outro modo de falarmos do inconsciente? O inconsciente produz morte subjetiva? Não, mas o eu - e não o inconsciente - teme a perda de sua imagem como uma morte subjetiva. A angústia é sempre um fenômeno do eu (FREUD, 1925, 1926).
Denis Villeneuve

Denis Villeneuve utiliza de outras técnicas para nos fazer sentir que algo de sinistro e inconsciente se trama neste filme, como ocorre com as diversas associações de imagens e ideias em torno da aranha, aparentemente deslocada ou mesmo dissociadas do contexto do filme ou, ao menos, da história principal. Manter partes inexplicadas causa desconforto e instabilidade no público que é levado a tentar associar, por conta própria, ideias e produzir sentido para aquelas figuras que parecem resistir à compreensão, duplicando assim o estado angustiado de Allan Bell diante de seu duplo: quero saber o que é isso, mas ao mesmo tempo temo saber...tudo parece um sonho - pior, um pesadelo! O sonho é estranho exatamente porque sabemos que diz respeito a nós mesmos, fomos nós que o criamos, mas o eu não se reconhece nele: o sonho - e ainda mais o pesadelo - é um espelho monstruoso de nossa subjetividade, talvez por isso Freud o chamou de via régia de acesso ao inconsciente (id, 1900).

E Freud já destacava, nos sonhos, partes que resistiam à interpretação, impenetráveis e que mamtinham o sujeito e o analista numa contínua pergunta: 'o que é isso?'. Poeticamente, Freud chamou isso de umbigo do sonho. As aranhas de O homem duplicado são como o umbigo do sonho, porém, mesmo que pareça, um filme não é um sonho, é uma obra de arte. Eis uma das facetas do que Umberto Eco chamou de obra aberta (1968), que coloca o público fruidor da obra de arte não como mero observador passivo, mas como co-criador da experiência estética. Estratégia estética eficaz, aprendida por Lynch e Villeneuve com o surrealismo que, não por acaso, se inspirou na obra freudiana. Mas as relações entre surrealismo e psicanálise poderão ser abordadas em outro post, quem sabe...
Cena do filme O homem duplicado (Denis VILLENEUVE, 2013)

Por hoje é só! Espero ter despertado o interesse de vocês pelo filme e pela psicanálise...e pelo blog. Espero conversar, trocar - portanto, aguardo comentários.

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